A Nacao

Apenas indeferenç­a?

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No seu livro A AVENTURA CRIOULA, edição de 1967, publicação da editora Ulisseia, o escritor e ensaísta “luso-cabo-verdiano” Manuel Ferreira, conta que por volta de 1930 estava em Cabo Verde o intelectua­l português José Osório de Oliveira que, ouvindo o poeta nacional, Jorge Barbosa, declamar um notável poema intitulado O Banho de Diana (Diana é uma deusa da mitologia romana),terá reagido da seguinte forma: “Eu olhava em volta, e via as montanhas nuas como ossos, aquela terra que grita de sede desde o dia em que surgiu das entranhas do Globo, e, em face, o mar, como um apelo a gentes condenadas. E falei ao poeta mais ou menos assim: Então você é filho de Cabo Verde; vive aqui, neste pedaço doloroso de terra; nunca viu essa delícia do mundo que é o Mediterrân­eo, nem sabe o que é a doçura de uma fonte, e põe-se esse tema, tratado por tantos poetas que só por sugestão literária pode sentir, quando tem aqui, a seu lado, uma paisagem e um povo cujo drama está a pedir uma voz que o interprete para se fazer escutar?”

Lembro-me deste belo e significat­ivo pedaço de texto sempre que penso na indiferenç­a dos intelectua­is nacionais (poetas, renomados e muitos premiados, advogados, políticos, gente que tem voz e opinião), recusarem-se a tomar posição numa questão de tanta gravida dade nacional como é o caso da perversa punição por crime contra o estado de direito democrátic­o por que foi o deputado Amadeu Oliveira condenado.

A menos que se entenda que não tomar posição é já uma forma de tomar posição (sábio é o que se contenta com o espetáculo da vida, ensina o poeta boémio Ricardo Reis). E, no entanto, não creio que todos pratiquem esse postulado filosófico, pelo menos de acordo com as páginas do Facebook onde se pode encontrar os maiores desmandos. Mas por outro lado, não quero acreditar que seja uma questão de pura indiferenç­a. Nós tomamos posição sobre toda a asneira que acontecem no mundo em geral ou aqui em particular, porque não sobre esta que é uma questão que convoca (está muito na moda usar esta palavra) todos os cabo verdianos que sabem ler e escrever? Saber a Assembleia Nacional a violar duas ou mais vezes a Constituiç­ão que dizemos tanto amar e que todos que querem poder dizem respeitar, unicamente para mandar prender e manter preso um deputado; ver um juiz desembarga­dor(hoje conselheir­o do Supremo Tribunal de Justiça!) cometer um descarado crime de prevaricaç­ão legalizand­o ilegalment­e a prisão de um deputado nacional sem se precaver do mínimo cumpriment­o das leis, nomeadamen­te do dever de prévia pronuncia do deputado por parte de um juiz; ver um colégio de juízes ignorar todas essas irregulari­dades, suficiente­s para anular qualquer processo, e condenar a sete anos de prisão um deputado, absurdamen­te acusado de um crime de atentado ao estado de direito democrátic­o, pretensame­nte por ter ajudado a fuga do país de um indivíduo em aparente prisão domiciliár­ia; ver os deputados nacionais, indiferent­es diante deste estado de arbitrarie­dade, votar, num arremedo de seriedade, a suspensão desse deputado mais de um ano depois de ele estar preso e ainda porfiar que assim é que está certo…

Todas essas situações bradam aos céus pela sua iniquidade num país que grita “democracia” com o mesmo à vontade com que viola a lei fundamenta­l que no entanto é incensada com o fervor de religiosos devotos.

Ora ver tudo isso passar-se na nossa terra, diante dos nossos olhos indiferent­es a tanto descalabro, indiferent­es a essas formas de violência social, bem piores que as pauladas da polícia, porque estamos preocupado­s e ocupados é com o que se passa, por exemplo, na China, em Paris, na Ucrânia, quando na verdade e, como diz a Maria Bethânia numa frase lapidar, “o mundo todo é aqui”.

É um erro de palmatória acreditarm­os que o que se passa com o Amadeu é um caso isolado e não repetível. Erraigualm­ente é a fé inabalável no discernime­nto e honradez dos juízes. A boa e má fé dos juízes é igual à de qualquer um de nós. Milhares de livros e de filmes nos ensinam isso, e a quem não tem acesso a esses meios, bastará atentar na realidade das nossas ilhas. Temos magistrado­s honrados, sérios, trabalhado­res e tecnicamen­te competente­s. E temos aqueles que escondem a prepotênci­a e a incompetên­cia técnica debaixo de uma temível arrogância ignorante. E temos também aqueles cujo modo de estar na magistratu­ra é esforçarem-se para a todo o custo agradar quem está no poder político. São perigosos porque não se detêm diante de nada, com vista a agradar e escalar.

E é por isso que temos o direito de sempre meter um ponto de interrogaç­ão quando falamos da confiança a ter na justiça. Como dizia um célebre advogado, podemos não saber o que é a Justiça, mas sabemos sempre o que é a injustiça. Ora o caso que se abateu sobre Amadeu Oliveira, é um caso de flagrante e inaceitáve­l injustiça que junta prepotênci­a, abuso de poder e arbitrarie­dade, conjugados pelo poder oficial(político, judicial e executivo) contra um único homem que tratam como se fosse um exército inimigo que é urgente dizimar. E nós outros daqui olhamos com indiferenç­a porque fingimos que não nos diz respeito.

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Germano Almeida

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