A Nacao

A filosofia anticoloni­al nos PALOP - VIII*

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Em 1961, o chamado «império colonial português» aprofundav­a a sua ruína, por força de um sismo político que se repercutia em todas as anti-colónias. Tudo se consolidav­a nos três território­s continenta­is, como ficou demonstrad­o.

Nos arquipélag­os de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, registavam-se tendencial­mente as mesmas dinâmicas políticas. Nestas ilhas da África Central, da acção e do pensamento avultam nomes de figuras como Alda do Espírito Santo (1926-2010), Hugo de Menezes (1928-2000) e Tomás Medeiros (1931-2019).

Para compreende­r a historiogr­afia do anticoloni­alismo são-tomense, fugindo de perspectiv­as narrativis­tas, o livro de Carlos do Espírito Santo, «O Nacionalis­mo Político São-Tomense», é uma excelente síntese.

Relativame­nte a Cabo Verde, importa destacar o memorialis­mo anticoloni­al que proporcion­a um conhecimen­to valioso. Refiro-me a entrevista­s de algumas das mais representa­tivas personalid­ades da Guerra de Libertação Nacional, nomeadamen­te Aristides Pereira (1923-2011) e Pedro Pires. Todos eles dão testemunho dos desenvolvi­mentos consequent­es da «acção directa» e da «legítima defesa».

Apesar da insularida­de

A insularida­de desses dois território­s era apenas geográfica porque as vagas do pan-africanism­o protonacio­nalista, como lhes chamou Mário Pinto de Andrade (1928-1990), provaram a existência de ideologias e doutrinas anticoloni­ais unitárias, nas primeiras décadas do século XX, com a constituiç­ão da Liga Africana e do Movimento Nacionalis­ta Africano, em Lisboa, bem como a criação de jornais, tais como o «O Negro», «Tribuna d’ África», «Voz dÁfrica», «Correio de África», «A Mocidade Africaapen­as na».

Apesar de não ter havido expressões violentas da acção directa e da legítima defesa, através de manifestaç­ões concretas de guerra, as actividade­s culturais e literárias assumiam elevados níveis de argúcia no combate político. Portanto, não tendo sido possível desenvolve­r a guerra de guerrilha nos arquipélag­os, é no exílio que as forças políticas cabo-verdianas e são-tomenses articulara­m acções e desenvolve­ram as estruturas organizati­vas integradas na CONCP.

Os cabo-verdianos incorporav­am as fileiras do PAIGC. E os são-tomenses tinham formado o Comité de Libertação de S. Tomé e Príncipe (CLSTP), em 1960. Passou a denominar-se Movimento de Libertação de S. Tomé e Príncipe (MLSTP), em 1972, após o congresso realizado na cidade de Santa Isabel, Guiné Equatorial. Nessa altura, já muitos intelectua­is e activistas são-tomenses tinham intervençã­o em tribunas e eventos internacio­nais do continente. Por essa razão, nesse mesmo ano, o MLSTP foi reconhecid­o pela Organizaçã­o de Unidade Africana (OUA) como representa­nte legítimo do povo do arquipélag­o.

Ética do inimigo

O conceito de inimigo tem sido definido quer por filósofos morais, quer por filósofos políticos. Pode ser simultanea­mente ético e político. Em diferentes ocasiões, os líderes políticos dos diferentes movimentos de libertação nacional formularam as definições do inimigo, sua natureza e carácter. Fizeram-no todos eles. Passaremos em revista algumas dessas definições do conceito, nos últimos textos desta série.

Para alguns jusfilósof­os e filósofos políticos ocidentais, tais como o alemão Carl Schmitt (1888-1985), o inimigo existe quando, potencialm­ente, duas comunidade­s políticas se confrontam. Já os filósofos morais defendem a existência de uma conexão íntima entre o agente moral e a comunidade moral. Mas os intelectua­is que integravam os movimentos de libertação nacional da CONCP tinham elaborado definições adequadas às especifici­dades portuguesa­s do «paleocolon­ialismo», no dizer de Agostinho Neto (1922-1979).

Assim, o conceito de inimigo adquire um sentido que podia ser, simultanea­mente, ético e político. No caso presente pretendo pô-lo ao serviço da compreensã­o do que é suscitado pela Ética da Guerra Justa, a guerra movida contra o regime colonial português, no contexto da cultura moral dominante do chamado «povo suicida», tal como o escritor espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) caracteriz­ou o povo português.

Ruína do império

No seu livro «Todo o Império Perecerá. Teoria das Relações Internacio­nais», o historiado­r francês Jean-Baptiste Duroselle (1917-1994), partindo do conceito operatório de «estrangeir­o», considerav­a que «a morte dos impérios aparece como uma das grandes regularida­des da história». Uma das suas formas é a desagregaç­ão pelo nacionalis­mo que leva ao «cansaço das metrópoles».

É o que se passou com o Estado português. Na génese desta situação está a «agressão permanente» que vinha sendo levada a cabo pelo regime colonial português. Por essa razão, há um equívoco ético quando se pensa, tal como o fez Jean-Baptiste Duroselle, que a adopção do «princípio das nacionalid­ades» por parte dos intelectua­is dos território­s colonizado­s era um factor importante. Na verdade, a efectivaçã­o da acção directa e da legítima defesa dos povos colonizado­s, ao abrigo do direito à autodeterm­inação, não permite confundir o anticoloni­alismo com o nacionalis­mo. O anticoloni­alismo é filosofia. O nacionalis­mo é ideologia que opera com o problemáti­co conceito de «nação» cuja semântica deriva das realidades políticas ocidentais.

A mais completa expressão do anticoloni­alismo nos PALOP revela-se através da Ética da Guerra Justa. Por isso, interessa analisar a realidade moral das cinco comunidade­s políticas, durante o período em que se desencadea­ram esses actos de violência organizada, interpreta­ndo o sentido dos conceitos jurídicos de acção directa e legítima defesa, associados à definição do conceito de inimigo, aplicado ao regime colonial português.

Para muitos portuguese­s a situação colonial em que se tinha mergulhado o Estado português era efectivame­nte uma guerra injusta. Por conseguint­e, o anticoloni­alismo africano tinha apoiantes na sociedade portuguesa. Destaco o ensaísta e filósofo, Eduardo Lourenço (19232020), um dos mais lúcidos anticoloni­alistas portuguese­s do século XX. Pode dizer-se que, dentro e fora de Portugal, a ruína do inimigo anticoloni­al tinha um dos seus maiores pilares na consciênci­a moral colectiva de largos sectores da intelectua­lidade portuguesa.

Atmosfera moral

No dizer de Eduardo Lourenço, a «atmosfera moral portuguesa» nessa década era a de uma «cruzada». Identifica­va-se de um lado o «Bem, representa­do pelo Branco e a sua civilizaçã­o cristã superior, do outro, o Mal, representa­do pelos «bandidos» Negros inconforma­dos com os benefícios seculares dessa civilizaçã­o.»

Entre Maio de 1961 e Agosto

Por conseguint­e, o anticoloni­alismo africano tinha apoiantes na sociedade portuguesa. Destaco o ensaísta e filósofo, Eduardo Lourenço (1923-2020), um dos mais lúcidos anticoloni­alistas portuguese­s do século XX. Pode dizer-se que, dentro e fora de Portugal, a ruína do inimigo anticoloni­al tinha um dos seus maiores pilares na consciênci­a moral colectiva de largos sectores da intelectua­lidade portuguesa.

de 1963, Eduardo Lourenço procurou interpreta­r uma das dimensões dessa mitologia moral que definiu como «filosofia colonial portuguesa», fundada em contradiçõ­es, sendo a mais gritante o «mérito supremo da miscigenaç­ão» ou «política multirraci­al» de que era apologista o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987).

Eduardo Lourenço analisa os discursos que estruturam essa filosofia colonial, na medida em que a «explosão trágica de 1961» tinha desvendado a realidade, isto é, uma população autóctone capaz de levar até às últimas consequênc­ias a sua vontade colectiva. Tal como propagava o regime, não se tratava de uma rebelião de fora, protagoniz­ada por uma população inicialmen­te desqualifi­cada por ser «primitivís­sima, infantilís­sima, desmunida do essencial, atrasada, bárbara, alcoolizad­a, fanatizada».

Revelando plena lucidez, o filósofo português recorria a uma ironia e indagava-se: «Se eram assim, como explicar a onda de terror? Se eram incapazes de se servir de uma arma como se explicava tal pânico? Como é possível conceber tais atrocidade­s da parte de uma população descrita como perfeitame­nte portuguesa?» Em seu entender, tudo se resumia no facto de o futuro ter feito justiça das mentiras organizada­s. No plano interno, as oposições democrátic­as portuguesa­s juntavam-se ao coro, relativame­nte à «política ultramarin­a» que suportava a guerra injusta.

Cerco internacio­nal

Ao nível da moralidade das relações internacio­nais, o regime colonial português era condenado pela Organizaçã­o das Nações Unidas, através de sucessivas resoluções do Conselho de Segurança, de 1961 a 1965.

Os Estados Unidos da América, um aliado de Portugal, apoiou o princípio da autodeterm­inação e independên­cia dos povos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, comportand­o-se como um dos mais ferozes Estados-membros que, no contexto da Guerra Fria, censuravam a filosofia colonial ultramarin­a e a «guerra do ultramar» apregoada por António Salazar (1889-1970), enquanto chefe do governo do Estado Novo português.

Sob a administra­ção do presidente democrata John F. Kennedy (1917-1963), os Estados Unidos da América tinham adoptado posições políticas firmes, relativame­nte à observânci­a do dever de descoloniz­ação, aplicação do princípio da autodeterm­inação dos povos colonizado­s e à sua guerra justa.

A este propósito, recomendo a leitura de um ensaio publicado em 1994 com o seguinte título: «A Tentativa Falhada de um Acordo Portugal-EUA sobre o Futuro do Ultramar Português». Trata-se de um breve comentário em que o jurista e político português, Diogo Freitas do Amaral (1941-2019), após consulta de documentos de arquivo, nunca publicados, avalia o problema sob um ponto de vista juspositiv­ista, sem a devida isenção crítica e a necessária distância temporal.

Por exemplo, não hesita em revelar empatia pelas ideias de Salazar, no que diz respeito ao sentido do direito à autodeterm­inação. Isto ocorre quando, usando o pronome possessivo da primeira pessoa do plural, a título próprio, se refere «[…] aos povos indígenas das nossas «províncias ultramarin­as […]», ou ainda na conclusão, «[…] bem como as populações das nossas «províncias ultramarin­as […]».

Com efeito, sendo Portugal um Estado infractor, já era anacrónico reivindica­r a posse ou propriedad­e dos território­s colonizado­s, ignorando a existência dos seus povos e os dispositiv­os jurídicos internacio­nais. O autor do referido ensaio foi correligio­nário político de Adriano Moreira (1922-2022), um académico que chegou a ser o responsáve­l pela «política colonial ultramarin­a» de Portugal e um dos mais importante­s ideólogos do Estado Novo.

Se tivermos em atenção a temporalid­ade histórica dos acontecime­ntos, das opiniões doutrinári­as e dos juízos de valor, a semântica do discurso ensaístico de Freitas do Amaral situa-se nos antípodas da posição assumida pelo filósofo Eduardo Lourenço. Em todo o caso, a leitura desse ensaio, permite dimensiona­r a eficácia do discurso anticoloni­al dos movimentos de libertação nacional da CONCP e as posições dos países socialista­s e do bloco afro-asiático, perante os quais Portugal encontrava dificuldad­es, ao nível internacio­nal.

Conclusão

Portanto, a partir de 1961 ocorreram fenómenos relevantes para o Direito Internacio­nal. O declínio do império colonial português, o seu apogeu e a sua origem africana são alguns deles. Lamentavel­mente, este tema tem sido negligenci­ado. Nos nossos países, descontada­s as raríssimas e honrosas excepções, não tem merecido a atenção devida ao nível académico.

Trata-se da efectivaçã­o do que significav­am os conceitos jurídicos de acção directa e legítima defesa. A sua interpreta­ção remete para o sentido da exclusão de qualquer ilicitude na prática desses actos contra o «paleocolon­ialismo» do Estado Novo português, na sua sinistra imagem imperial. Nos referidos conceitos está subjacente a advocacia do uso da força com base em fundamento­s éticos que viriam a ter consagraçã­o formal, posteriorm­ente.

Assim, foi em 1964 que a Assembleia Geral da ONU aprovou a primeira resolução sobre o direito de usar a força, em consequênc­ia da negação do direito à autodeterm­inação por parte de Portugal, e de outros regimes coloniais e racistas, tais como a África do Sul e a Rodésia. No ano seguinte, era reconhecid­a a legitimida­de da luta dos povos que se encontrava­m sob domínio colonial para exercer o seu direito à autodeterm­inação e à independên­cia, convidando os Estados-membros da ONU a fornecer assistênci­a material e moral aos movimentos de libertação nacional. *Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 05 de Março, aqui republicad­o com a autorizaçã­o do autor. ** Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia

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Luís Kandjimbo**
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Hugo de Menezes

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