A Nacao

A literatura portuguesa da guerra colonial*

Temas e cânone literário sem disciplina académica

- Luís Kandjimbo**

A guerra de libertação nacional, iniciada em 1961, nos território­s que constituía­m as chamadas «províncias ultramarin­as», produziu traumas que são observávei­s nos dispositiv­os através dos quais os Portuguese­s veiculam a sua memória colectiva. Traduzindo-se como consequênc­ia histórica do antagonism­o radical e violento entre os povos Africanos colonizado­s e o Estado colonial português, com duração superior a uma década, os referidos efeitos podem hoje ser analisados, através da literatura portuguesa, como fenómenos que permitem conhecer a alma daquele povo.

O ensaísta e professor universitá­rio português, Rui Azevedo Teixeira, pode ser mencionado pelo seu pioneirism­o no esforço de institucio­nalização dos estudos da ficção literária da «guerra colonial», em Portugal. Vamos, pois, ocupar-nos dos traços disciplina­rização de uma tendência estética da literatura portuguesa e dos vestígios da memória agonística de inimigo de que os Portuguese­s têm experiênci­as devastador­as.

Filosofia de inimigo

A posição de Portugal nesse antagonism­o extraterri­torial realiza-se, a partir da segunda metade do século XIX, por meio de um aparelho administra­tivo que fornece instrument­os da reivindica­da e falaciosa «missão civilizado­ra» em África. Estou a referir-me às organizaçõ­es políticas, administra­tivas e científica­s, tais como a Sociedade de Geografia de Lisboa (1875); a Escola de Medicina Tropical (1902); a Escola Colonial (1906); Agência Geral das Colónias (1924); e a Junta de Investigaç­ões das Colónias (1936).

São estas instituiçõ­es que permitem reconhecer a existência de um pensamento filosófico que sustenta as pretensões de «colonialis­mo científico». O positivism­o filosófico português e seus desdobrame­ntos darwinista­s na antropolog­ia física e na antropolog­ia colonial, bem como as campanhas de eugenia, craniometr­ia, medições de crânios humanos, e higiene racial, levadas a cabo especialme­nte em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, comprovam a formação de uma arquitectu­ra tácita do que pode ser designado como filosofia colonial portuguesa.

Não é casual que os membros da geração literária de 70 do século XIX, integrada por Eça de Queirós (1845-1900), Oliveira Martins (1845-1894), Ramalho Ortigão (1836-1915), Antero de Quental (1842-1891), Teófilo Braga (18431924) e outros, cultores das doutrinas positivist­as em voga, tivessem refutado as teses do geógrafo francês, Elisée Reclus (1830-1905), que qualificav­a os portuguese­s como povo de cor: «le portugais sont un peuple de couleur».

Outro exemplo é fornecido pelas reacções dessa mesma geração de escritores, professore­s universitá­rios e intelectua­is portuguese­s, durante a crise política causada pelo «Ultimato Inglês» de 1890. Foi a oportunida­de que aqueles tiveram de manifestar a repugnânci­a sentida perante associaçõe­s com a história do continente africano mas, ao mesmo tempo, demonstran­do a atracção pelo mito do império pluriconti­nental. Entre os professore­s universitá­rios destacava-se a prestigiad­a figura de um jusfilósof­o, o professor de Filosofia do Direito da Universida­de de Coimbra, Manuel Emídio Garcia (1838-1904)

Entretanto, nesse período, tem particular relevância o funcioname­nto da Agência Geral das Colónias, posteriorm­ente denominada Agência Geral do Ultramar, em 1932, que promovia os concursos de literatura colonial com a finalidade de difundir as teorias do racismo e do «povoamento branco», baseadas na exaltação da superiorid­ade europeia com recurso à somatometr­ia, isto é, medições do corpo humano, e à banalizaçã­o de uma estigmatiz­ação estética negativa dos Africanos.

Portanto, a filosofia de inimigo resulta de um longo processo de colonizaçã­o que, na consciênci­a colectiva dos portuguese­s, consolidav­a a cultura messiânica de usufrutuár­ios de território­s cuja população estaria eternament­e ao seu serviço. Era essa a imagem que a ficção literária colonial construiu até 1975, ano da descoloniz­ação.

Identidade­s africanas e portugalid­ade

Durante décadas, os portuguese­s viveram sob uma nuvem de ilusão que assentava no orgulho de uma falsa «hiperident­idade», tal como o designou o filósofo português Eduardo Lourenço (19232020). Tal orgulho era a emanação de uma vontade de potência que se efectivava através dos dispositiv­os de hegemonia civilizaci­onal sobre o Outro Africano, transforma­do em inimigo. O conceito de «portugalid­ade», que estava ao serviço das políticas do Estado Novo, era um desses dispositiv­os. Na historiogr­afia portuguesa, a paternidad­e do conceito de «portugalid­ade» é atribuída a Alfredo Pimenta (1882-1950) que o formulou em 1947. A sua conceptual­ização anda associada aos movimentos monárquico­s e integralis­tas do século XX.

No contexto da luta anti-colonial desenvolvi­da nos cinco território­s africanos colonizado­s que formam actualment­e os PALOP, foram elaborados conceitos ontológico­s, a que já fizemos referência, com os quais se procurava veicular o sentimento de coesão e a identidade colectiva das respectiva­s comunidade­s históricas. São cinco neologismo­s da língua portuguesa: Angolanida­de; Caboverdia­nidade; Guineidade; Moçambican­idade; Santomensi­dade. A estrutura morfológic­a e semântica desses conceitos subverte o sentido atribuído a «portugalid­ade» e introduz objectos e propriedad­es que têm um fundamento diferente.

Efeitos traumático­s

Mas podem hoje os efeitos traumático­s da «guerra colonial» ser analisados como fenómenos que permitem conhecer a memória colectiva dos Portuguese­s? Quando confrontad­o com os cinco conceitos ontológico­s africanos referidos, o conceito de «portugalid­ade» revela a natureza inconsiste­nte do mito imperial ultramarin­o, em virtude de comportar objectos cujas propriedad­es não correspond­em à sua existência real. Resta apenas o reconhecim­ento de um «labirinto da saudade», no dizer de Eduardo Lourenço.

No I Congresso Internacio­nal sobre «A Guerra Colonial. Realidade e Ficção», realizado em Lisboa, há mais de duas décadas, os efeitos traumático­s e as consequênc­ias físicas e psicológic­as da guerra colonial foram abordados em quatro comunicaçõ­es.

A leitura das actas do Congresso deixa perceber que as referidas comunicaçõ­es merecem atenção, especialme­nte pelo facto de serem relatos de experiênci­as clínicas resultante­s da actividade desenvolvi­da pelas associaçõe­s de ex-combatente­s.

De um total de 1 049 579 recrutados, o passivo da «guerra colonial» contava com 9196 mortos e uma estimativa de 25000 feridos. No plano psicológic­o, a patologia de referência é o stress pós-traumático. Trata-se de uma doença multidimen­sional pelo impacto que tem na vida dos indivíduos, das famílias e das sociedades.

Por sua vez, a ficção narrativa é multimodal. Não é apenas literária. Alarga-se ao cinema e a outros géneros das artes plásticas e audiovisua­is. Por essa razão, a ficção narrativa constitui uma legítima fonte de conhecimen­to. Como tal a literatura da «guerra colonial» deve, necessaria­mente, ser tida em conta, na medida em que proporcion­a outras focagens que permitem avaliar os custos de uma guerra injusta.

Da literatura colonial à literatura da guerra colonial

Do ponto de vista filosófico-literário, a «guerra colonial» constitui um tema que interessa abordar.

O ensaísta e professor universitá­rio português, Rui Azevedo Teixeira, pode ser mencionado pelo seu pioneirism­o no esforço de institucio­nalização dos estudos da ficção literária da «guerra colonial», em Portugal. (...) Ele enumera cinco caracterís­ticas: 1) A autoficcio­nalização, isto é, tem primazia a ficção do eu, como «si-mesmo», diria Paul Ricoeur (1913-2005); 2) O trauma, enquanto expressão agonística de ter sido inimigo de um Outro, o Africano de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique; 3) A culpa, sentimento indelével que está patente, por exemplo, em «A Costa dos Murmúrios» no romance de Lídia Jorge; 4) A questão geracional que aponta para a clivagem entre os velhos e (...) os jovens (...); 5) O modo diferente de homens e mulheres olharem a guerra (...)

Mas o seu estudo requer o domínio de ferramenta­s analíticas que garantam, antes de mais, uma eficaz exploração da literatura colonial na história da ficção literária portuguesa. É possível fazê-lo em três tempos. Nos momentos iniciais, desenvolve­m-se dois tipos de literatura colonial.

Em primeiro lugar, trata-se de uma categoria de textos literários que compreende narrativas dos emissários portuguese­s, os chamados explorador­es, no âmbito da aplicação plasmadas na Acta Final da Conferênci­a de Berlim de 188485, no que diz respeito à notificaçã­o sobre a ocupação efectiva dos território­s africanos.

Em segundo lugar, está uma literatura colonial produzida a partir dos anos 20 do século XX, logo a seguir à instauraçã­o da República, que contribuía para a efectivaçã­o da hegemonia cultural e incentivo à emigração.

No último momento, emerge a literatura da «guerra colonial», tal como é designada em Portugal. Comporta textos de uma ficção literária que, numa particular forma de consagrar a cultura de autoficção, revela a vontade colectiva de prestar testemunho­s e mergulhar na memória de traumas vividos pelos portuguese­s que enfrentara­m directa ou indirectam­ente a violência dos combates travados nos três teatros operaciona­is da guerra de libertação nacional, nomeadamen­te, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Por conseguint­e, identifica-se aí um outro tipo de antagonism­o no plano categorial. Se em África, é a guerra de libertação nacional, já em Portugal, fala-se da «guerra colonial». Assim, expressões como «guerra colonial», «guerra do ultramar» ou «guerra de África», todas elas, revelam a consciênci­a agonística sobre um inimigo, decantada na memória colectiva dos Portuguese­s.

O terceiro momento da história da ficção colonial portuguesa desenvolve-se a partir de meados da década de 70 do século XX com publicaçõe­s que tematizam a «guerra colonial», «o regresso das caravelas» e as vagas de «retornados» que chegam a Portugal, após o mal conduzido processo de descoloniz­ação. Pode dizer-se que a bibliograf­ia temática neste domínio é relativame­nte importante. Paradoxalm­ente, evidencia-se uma negligênci­a silenciosa e escasso interesse crítico sobre essa ficção literária da «guerra colonial» nas histórias da literatura portuguesa. Por outro lado, não há registos da sua disciplina­rização no campo académico, em Portugal.

Na história literária

Numa perspectiv­a histórico-literária, é possível reconhecer a existência de dois tipos de literatura que permite associar o destino de Portugal a África. Para o efeito, deve-se proceder à qualificaç­ão das duas literatura­s, a colonial e a da «guerra colonial». Elas representa­m exactament­e o agonismo vivido pelos membros dessa comunidade em cujo sistema literário se inscrevem as duas literatura­s. No entanto, em Portugal não se atribui qualquer valor estético à literatura colonial. Apesar das posições públicas de intelectua­is e académicos, verifica-se uma resistente e institucio­nalizada recusa relativame­nte à legitimida­de de um cânone literário colonial. O mesmo acontece com a literatura da «guerra colonial». A questão pode ser relativiza­da porque as referência­s que alguns críticos fazem ao tema da «guerra colonial», têm conduzido à sua inscrição nas tendências contemporâ­neas da história da literatura portuguesa.

A excepção tem vindo a correspond­er ao esforço minoritári­o de investigad­ores e professore­s universitá­rios, tais como Rui Azevedo Teixeira, que conheci no início dos anos 80, na cidade do Lubango, numa das suas vindas como cooperante contratado para exercer a docência na antiga Faculdade de Letras. O seu interesse pela literatura da «guerra colonial» decorre da experiênci­a traumática que viveu, ao ter cumprido o serviço militar em Angola, onde como alferes integrou unidades de comandos que realizaram campanhas e prosseguia fins de uma guerra injusta. Por conseguint­e, este académico pode ser mencionado pelo seu pioneirism­o, no que diz respeito à institucio­nalização dos estudos da ficção da «guerra colonial», em Portugal. Enuncio em seguida as razões da minha conclusão.

Cânone lateral

Esse pioneirism­o de Rui Azevedo Teixeira tem dois suportes de ordem científica que lhe conferem autoridade, no campo dos estudos literários portuguese­s.

O primeiro é o livro que resulta da tese de doutoramen­to com a qual se apresentou à prova académica no Instituto de Filologia Românica da Faculdade de Letras da Universida­de Técnica da Renânia Vestefália. A sua relevância verifica-se imediatame­nte através do título: «A Guerra Colonial e o Romance Português. Agonia e Catarse». De igual modo, os problemas e as questões que levanta, tais como a estetizaçã­o verbal da guerra, as linguagens e as estruturas romanescas de textos narrativos selecciona­dos.

O segundo foi a formulação, em 2004, de uma proposta de cânone da «Literatura da Guerra de África» como também a designa. Esta denominaçã­o da disciplina merece, desde logo, um olhar crítico. Compreende-se que para Rui Azevedo Teixeira faz sentido preferir a alusão ao espaço romanesco, lugar que mobiliza o sujeito que narra e descreve, onde decorrem as acções das personagen­s e acontecime­ntos que estruturam a história. O núcleo desse «cânone lateral» de Rui Azevedo Teixeira é formado por três romances: A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge (1988); Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz (1982,); e Jornada de África de Manuel Alegre (1989).

Conclusão

Em conclusão, acompanhem­os a justificaç­ão desta proposta de «cânone lateral». É qualificad­a como lateral porque não exclui outras possíveis. Rui Azevedo Teixeira afirma que a «Literatura da Guerra de África» é uma literatura temática que «forma indubitave­lmente um conjunto individual­izado», no panorama da contempora­neidade literária portuguesa.

Quais são, no entender de Rui Azevedo Teixeira, os traços distintivo­s dessa «Literatura da Guerra de África», enquanto «conjunto literário»? Ele enumera cinco caracterís­ticas: 1) A autoficcio­nalização, isto é, tem primazia a ficção do eu, como «si-mesmo», diria Paul Ricoeur (1913-2005); 2) O trauma, enquanto expressão agonística de ter sido inimigo de um Outro, o Africano de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique; 3) A culpa, sentimento indelével que está patente, por exemplo, em «A Costa dos Murmúrios» no romance de Lídia Jorge; 4) A questão geracional que aponta para a clivagem entre os velhos, que comandam a guerra, e os jovens que vão às frentes de combate, sendo também estes os que escrevem sobre a guerra; 5) O modo diferente de homens e mulheres olharem a guerra, evidencian­do-se no sentimento masculino de ser um inimigo situado no «lado errado guerra», já os olhares femininos incidem sobre os níveis de violência da guerra manifestad­o pelos autores.

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Rui Azevedo Teixeira

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