Os blues da Sibéria
Kyzyl, o nome da capital da República de Tuva, significa ‘vermelho’ ou ‘carmin’, na língua local, como lhe explicam, logo ao chegar. Se ainda hoje é considerada uma das mais remotas de toda a Federação Russa, em 1995, quando Paul - agora sem barba e bastante mais gordo, duplo queixo -, desembarca no aeroporto, com uma equipa de cineastas, depois de atravessar uma cordilheira e a estepe siberiana, o mundo nunca tinha ouvido falar deste povo ou deste país.
Aliás, a região, que faz fronteira com o norte da Mongólia, seria a última a integrar a União Soviética, no período entre as duas guerras, no século XX. Não existem conexões por comboio e os voos para Kyzyl são escassos. O seu profundo isolamento está na origem da preservação da vibrante cultura tradicional. O budismo, o shamanismo, a prática do khuresh wrestling (a luta livre local), o nomadismo e o folclore musical, são a sua grande expressão. E é precisamente esta última, a música, e a forma muito peculiar dos homens de Tuva emitirem sons guturais harmónicos, do fundo da garganta, conhecido por Khoomei, que leva Paul Pena a interessar-se por este país.
Paul gostaria de ver a face e os olhos de todos aqueles que, à sua volta, lhe mostram simpatia, tocam-lhe no ombro. Mas, o máximo que pode fazer é lavar o rosto nas águas dos seus rios sagrados e sorrir. Por mais que lhe mostrem e apontem, o músico não pode ver a cidade espraiando-se pela planície, entre as montanhas Sayan e o rio Yenisei, nem visitar o famoso obelisco que marca oficialmente o ponto mais central da Ásia. Paul está completamente cego, já faz vinte e cinco anos.
A história do seu encontro com Tuva é das mais estranhas que se podem encontrar. Enquanto se dedicava a cuidar da mulher, e logo depois de ela adormecer, sob o efeito da medicação, Paul viajava pelas ondas da rádio, levado pela curiosidade.
Certa noite, em 1984, quando procurava sintonizar aulas de coreano, em onda curta, ficou intrigado com um momento de demonstração do canto Tuva, através da Rádio Moscovo. Paul ficou profundamente impressionado. Passou os sete anos seguintes a reunir informação sobre aquela estranha forma de cantar.
Na ausência de dicionário Tuva-Inglês, consegue chegar a textos de língua Tuva via dicionários Tuva-Russo e depois Russo-Inglês, utilizando um scanner para conseguir a forma de cada letra, até poder senti-la, tactilmente. Processo que obrigava a passar palavras de Tuva, letra a letra, para o russo e deste para o inglês. Procurou nas lojas de discos, nas livrarias, até que encontrou um CD de canto Tuva. Estava também encontrada a sua nova paixão. Esta música, que continha a mesma linha trágica e melancólica do blues, fazia-lhe vibrar o sangue, transportando-o para latitudes e culturas remotas.
Através deste CD, Paul treinou as suas capacidades vocais, o timbre e o ritmo, aprimorando cada vez mais a técnica Tuva. Durante largos meses, não ouviu outra coisa. Os próprios amigos já não podiam ouvir mais aqueles ruídos guturais estranhos, de transe, que ele fazia com a garganta.
Filho adoptivo de Tuva
Em 1993, dois anos após a morte da mulher, surgiu a primeira oportunidade para mostrar publicamente a sua técnica. O encontro aconteceu no Museu de Arte Asiática, diante da maior estrela do canto Tuva, Kongar-ol Ondar.
Paul Pena pegou no microfone, encheu os pulmões, olhou a plateia e interpretou um canto Tuva dedicado à amizade, espalhando a sua voz cavernosa pela sala. Quando terminou Kongar, estava siderado. Perguntava o que é que tinha acabado de acontecer, que homem era aquele. Ficou de tal maneira impressionado que convidou Paul para participar no Segundo Simpósio Internacional Khoomei (o nome local deste estilo musical), a decorrer dali a dois anos, em Kyzyl, capital de Tuva.
O concurso de vozes, que se seguiu ao simpósio, marca a história de Paul Pena com o canto Khoomei. A história repete-se: Paul sobe ao palco e de imediato a sua técnica espanta o júri, que lhe atribui o primeiro lugar, recebendo também o prémio do público. Da noite para o dia, o bluesman é baptizado, pelos locais, como Cher Shimjer – O Terramoto – pela força e profundidade da sua voz. Esta viagem, que se tornaria lendária, fica registada num documentário, ‘Genghis Blues’, premiado, na edição de 1999 do Sundance Festival, tendo sido nomeado também para um prémio da Academia de Hollywood, em 2000, na categoria de Documentário.
Nos espectáculos com Kongar, Paul misturou a técnica americana do blues e o Khoomei, tocando guitarra acústica, com slide. É curiosa, também, a introdução de palavras do crioulo, que Paul faz na música ‘Terraplane Blues’: ‘’Es amigo meu li, M ka podê papiá ku el, Mam M krê Kanta ku el, ulé, ulé, ulé, lé…’’ Paul passou, assim, do promissor e depois esquecido bluesman da Bay Area de São Francisco, para uma improvável estrela do Khoomei, o canto originário das montanhas de Tuva, na Sibéria do Sul.
O sucesso e reconhecimento
Se a odisseia de Paul rumo à cultura ancestral de Tuva é fascinante, o lado trágico do seu destino é perturbador, mas igualmente enternecedor. A morna é a primeira forma de blues que Paul conhece, no seio da família, ainda menino.
A história da morna e do blues, é sabido, está recheada de tragédias pessoais, quer nas ilhas, quer nos Estados Unidos. Paul Pena é apenas mais um exemplo, entre tantos outros. Para além da sua saúde frágil, o músico haveria de ser uma das vítimas de Albert Grossman, um dos escroques do show biz americano, cujo nome esteve sempre envolvido a casos de exploração e de falta de escrúpulos (como congelar a carreira de um músico cego).
Em 1997, logo após ter retomado a sua carreira musical, Paul sofreu um acidente doméstico, ficando com profundas queimaduras no corpo, quando a cama onde dormia pegou fogo. Depois de anos como diabético, os médicos diagnosticaram-lhe, erradamente, um cancro no pâncreas, dando-lhe três meses de vida. Teve de se submeter a um inócuo tratamen
to de quimioterapia. Oito meses depois, Paul começou a desconfiar que ainda não tinha chegado a sua hora. Em 2000, quando o ânimo, finalmente, permitiu que ele voltasse ao estúdio para gravar algumas músicas, em que misturava a morna o blues e o canto Tuva, os médicos desta vez acertaram, quando lhe apontaram uma pancreatite.
Este trabalho discográfico, tardio, que sintetiza a sua vida musical, teria o título de Genghis Blues, e foi editado em 2000, coincidindo com a saída, finalmente, de ‘New Train’, o álbum de 1973. O disco foi de imediato considerado pela crítica americana um dos melhores do blues-rock de sempre. E Paul pôde ainda saborear uma pontinha do sucesso, que lhe foi negado, durante quase 30 anos, ao ser convidado para o ‘Late Night with Conan O’ Brian’, onde interpretou o seu maior sucesso, ‘Jet Airliner’.
Ao longo da sua vida, o músico nunca deixou de tocar e cantar morna. A sua preferida era ‘Traz d’Horizonte’, e que ele gravaria para o ‘Genghis Blues’, naquilo que pode ser visto como uma derradeira homenagem à terra mítica dos seus antepassados. Paul Pena morreu a 1 de Outubro de 2005, aos 55 anos. Mas, ainda hoje, na longínqua terra dos cavaleiros nómadas descendentes de Genghis Khan, da estepe siberiana, há quem se lembre de Paul ‘Terramoto’ Pena. Um homem sorridente, habitado por ilhas, mar e blues.
Este trabalho discográfico, tardio, que sintetiza a sua vida musical, teria o título de Genghis Blues, e foi editado em 2000, coincidindo com a saída, finalmente, de ‘New Train’, o álbum de 1973. A notícia da edição do disco ‘New Train’ foi recebida com grande entusiasmo por vários amigos e pela família de Paul. Num documentário, a propósito do lançamento do disco, a cantora Bonnie Riat recordou a paixão que Paul sempre colocou na sua música, comparando a sua voz à de Jimmy Hendrix, ‘’um talento puro, uma alma pura, um génio na forma de cantar e de tocar guitarra’’, disse. ‘’Tal como muitas histórias no mundo da música, foi uma tremenda injustiça o que aconteceu com Paul e uma grande pena para nós todos que poderíamos ter tido um disco como ‘’New Train.’’ A cantora lembra como o músico poderia ter tido uma carreira de sucesso. O produtor e teclista Ben Sidren, que tocou teclado no disco, refere-se a Paul Pena como sendo ‘’único, como ninguém que alguma vez tivesse encontrado: muito sério, muito filosófico, mas ao mesmo tempo muito divertido e bem terra a terra.’’ Sidren recorda como nos anos de 1971 e 1972 não havia um compositor/cantor melhor do que Paul Pena. Para Virgínia Souza, a mãe, ‘’Paul é todo ele música, e a música é Paul.’’ A edição do disco, afirmou Virgínia, na altura, ‘’é como um bálsamo, uma cura para nós. Paul é uma dádiva para nós todos, e poder partilhar Paul com o resto do mundo é, em si mesmo, uma dádiva. É como desembrulhar constantemente um presente.’’
Após a publicação, o disco foi de imediato considerado pela crítica americana um dos melhores do blues-rock de sempre. E Paul pôde ainda saborear uma pontinha do sucesso, que lhe foi negado, durante quase 30 anos, ao ser convidado para o ‘Late Night with Conan O’ Brian’, onde interpretou o seu maior sucesso, ‘Jet Airliner’. Ao longo da sua vida, o músico nunca deixou de tocar e cantar morna. A sua preferida era ‘Traz d’Horizonte’, e que ele gravaria para o ‘Genghis Blues’, naquilo que pode ser visto como uma derradeira homenagem à terra mítica dos seus antepassados. Paul Pena morreu a 1 de Outubro de 2005, aos 55 anos. Mas, ainda hoje, na longínqua terra dos cavaleiros nómadas descendentes de Genghis Khan, da estepe siberiana, há quem se lembra de Paul ‘Terramoto’ Pena. Um homem sorridente, habitado por ilhas, mar e blues.