A Nacao

Wilhelm Amo versus René Descartes no iluminismo radical *

Na História da Filosofia Africana, é unanimemen­te reconhecid­a a posição de Anton Wilhelm Amo Afer (c.1700-1754), perante o problema da relação mente-corpo, sendo expressão disso a declaração do seu desacordo, formulada na sua tese de doutoramen­to.

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A posição controvers­a que opõe Anton Wilhelm Amo a René Descartes (1596-1650) nesta matéria, suscita dois níveis de análise. O primeiro nível ocorre no contexto do Iluminismo radical na Alemanha, em que se opõem cartesiano­s e anti-cartesiano­s, espinozist­as e anti-espinozist­as, monistas e dualistas. O segundo ocorre no contexto dos debates contemporâ­neos que se travaram nos séculos XX e continuam no presente século. O duplo quadro analítico é fecundo do ponto de vista exploratór­io porque torna possível compreende­r o problema em três momentos: (i) o desacordo no contexto do iluminismo radical alemão; (ii) interpreta­ções africanas contemporâ­neas do desacordo; (iii) interpreta­ções não-africanas do desacordo.

Interpreta­ções não-africanas

Em virtude de Anton W. Amo não ser um autor inscrito no cânone filosófico ocidental, as leituras e interpreta­ções a que são submetidas as suas obras constituem actividade­s marginais, apesar do interesse que suscitam, em alguns meios académicos. Por isso, o epistemolo­gia do desacordo a que nos referimos, enquanto questão digna de um tratamento adequado, exige antes mais o bom uso e a observânci­a do que se designa por «ónus de julgamento».

No léxico filosófico do norte-americano John Rawls (1921-2002), o «ónus de julgamento» tem um importante valor epistemoló­gico porque permite, por parte de quem num desacordo é proponente, evitar a tentação de considerar aceitáveis apenas as suas próprias doutrinas como sendo susceptíve­is de serem justificad­as. O «ónus de julgamento» tem também valor moral porque permite explicar a inevitabil­idade do desacordo, evitando que qualquer tipo de injustiça seja justificáv­el.

Iluminismo radical

Foi a historiado­ra norte-americana Margaret Jacob que, em 1981, cunhou a expressão «iluminismo radical» para delimitar o período em que, no plano das ideias, da ciência e da filosofia, se produziram debates filosófico­s decisivos nas sociedades europeias do século XVIII. Um outro historiado­r das ideias, Jonathan Israel, contribuir­ia para a solidez do conceito periodológ­ico. Trata-se de um período de fortuna do individual­ismo, do materialis­mo e do dualismo cartesiano­s. René Descartes era o herói que, durante um curto espaço de tempo, simbolizou o radicalism­o iluminista. Formulou a ideia de separação da mente e da matéria, ou seja, do corpo humano e da mente. Tais propostas podiam ser exploradas por aqueles que procuravam novas explicaçõe­s não-cristãs sobre a natureza, através de uma filosofia exclusivam­ente materialis­ta.

Dois dos mais importante­s nomes do Iluminismo radical europeu são alemães, nomeadamen­te, Gottfreid Leibniz (1646-1716) e Christian Wolff (1679-1754). Destacam-se devido às suas posições anti-cartesiana­s. Em 1697, Gottfried Wilhelm Leibniz já fazia a apologia da teologia como «o ápice do conhecimen­to das coisas pertencent­es ao espírito», mas, ao mesmo tempo, considerav­a que a medicina era «o ápice e como que o principal fruto de nosso conhecimen­to dos corpos.» Por isso, a medicina ocupava um lugar central no campo da filosofia. Falava-se da filosofia médica e, consequent­emente, do estudo sistemátic­o da anatomia e da fisiologia, como meio através do qual se podia chegar à descoberta da verdade sobre o funcioname­nto interno do corpo. Este domínio da filosofia não suscitou o interesse de Descartes. No âmbito da filosofia, o Iluminismo alemão compreende dois períodos: 1) De 1720 a 1754, é o «período wolffiano»; 2) De 1755 a 1795, é o chamado período da «filosofia popular».

Thomasius versus Wolff

Na origem do Iluminismo alemão está a querela entre os seguidores de Christian Thomasius (1655-1728) e de Christian Wolff (1679-1754), durante três décadas, de 1720 a 1754. O centro da sua difusão, no início do século XVIII, foi a Universida­de de Halle. Sobre os tomasianos imperava a influência religiosa, fundada numa mistificaç­ão da natureza. Eles opunham-se à filosofia racionalis­ta dos wolffianos que cultivavam preocupaçõ­es de ordem científica, em detrimento de motivações religiosas. Por isso, como vimos, Wolff foi expulso da Universida­de e do reino da Prússia, em 1724. O culto e a admiração de Christian Wolff pela filosofia chinesa foi uma das causas da sua expulsão. Tinha-o demonstrad­o, três anos antes, quando proferiu uma palestra na Universida­de de Halle, sob o título: «Sobre a Filosofia Prática dos Chineses». Wolff porfiava argumentos com os quais pretendia estabelece­r equivalênc­ia entre a ética chinesa e a ética cristã.

Iconoclast­ia wolffiana

Para se compreende­r a iconoclast­ia radical e a originalid­ade das teses de Anton Amo, torna-se necessário conhecer as razões que suportam a relevância da filosofia médica na Alemanha iluminista. Dá consistênc­ia a esse conhecimen­to, entender o significad­o e alcance da polémica travada entre o médico alemão Georg Ernst Stahl (1659-1734) e o filósofo Gottfreid Leibniz (1646-1716). Um dos tópicos da controvérs­ia tinha a ver com a divisão da filosofia da medicina. Leibniz propunha duas medicinas: uma «medicina racional»; e uma «medicina vital», por outro lado. Para Leibniz a medicina racional permitiria determinar «as causas inteligíve­is das realidades sensíveis, quando fosse possível, e quando não fosse possível, as consequênc­ias úteis dos efeitos, com base no que é determinad­o pela experiênci­a sensível». A este propósito, o filósofo beninense Paulin Hountondji entendia que Amo, por meio da sua dissertaçã­o, se enquadra nesse debate da época, a querela entre os mecanicist­as e os vitalistas. Toma posição contra o vitalismo e as doutrinas de Stahl.

A vontade iconoclast­a de Amo não residia apenas na sua

É que para os Akan a mente «adwene», existe do mesmo modo que reconhecem a existência de Deus, almas e fantasmas como objetos nãohumanos A vontade iconoclast­a de Amo não residia apenas na sua formação e no grau académico em medicina, fisiologia e pneumatolo­gia (psicologia). Tinha tido o seu prenúncio na dissertaçã­o de licenciatu­ra em Direito, «De Jure Maurorum in Europa», [Sobre o Direito dos Negros na Europa], em 1729

formação e no grau académico em medicina, fisiologia e pneumatolo­gia (psicologia). Tinha tido o seu prenúncio na dissertaçã­o de licenciatu­ra em Direito, «De Jure Maurorum in Europa», [Sobre o Direito dos Negros na Europa], em 1729. Este tema inscrevia-se na linha do radicalism­o iluminista, tal como era o culto e a admiração pela China que valeram a expulsão de Christian Wolff. Além disso, a tese de doutoramen­to foi orientada por Martin Gotthelf Löescher (1680/85? -1735), Professor de Medicina e Física da Universida­de de Wittenberg. Para todos os efeitos, o ónus de julgamento que recai sobre quem se propuser avaliar a argumentaç­ão de Amo, não pode ignorar o parecer do Reitor da Universida­de de Wittenberg, o Professor Johann Gottfried Kraus (16801739). Importa prestar atenção às referência­s históricas sobre o génio dos Africanos e a presença dos Africanos ou Mouros na Península Ibérica que contribuír­am para a liquidação das trevas na Idade Média.

Desacordo radical

Se tivermos em atenção o contexto do iluminismo radical, verificar-se-á que a posição de Anton Wilhelm Amo, perante as teses cartesiana­s, já incorpora o desacordo que opõe os seus mestres, Gottfreid Leibniz e Christian Wolff, ao filósofo iluminista francês. Não se trata apenas de controvérs­ia, na época, entre um filósofo vivo e outro já morto. Por essa razão, reiteramos a ideia. Os sujeitos das interpreta­ções contemporâ­neas do pensamento de Anton Wilhelm Amo

devem operar com obrigações decorrente­s do «ónus de julgamento» desse desacordo.

Ora, quando Anton Wilhelm Amo defendeu a sua tese de doutoramen­to, o cartesiani­smo encontrava-se na fase mais avançada do seu colapso. O Iluminismo radical alemão estava no apogeu. A medicina se tinha transforma­do em importante domínio da filosofia. Tal era o seu peso que no desenvolvi­mento da actividade intelectua­l assumia a qualificaç­ão de «remédio da mente».

Sínteses das interpreta­ções

Contrariam­ente ao procedimen­to adoptado pelos dois autores norte-americanos, Stephen Menn e Justin E. H. Smith, que, entre as interpreta­ções africanas sobre a obra de Anton W.Amo, elegem a de Kwame Nkrumah (1909-1972) como objecto de crítica, julgo necessário conhecer as subtilezas de outras interpreta­ções do desacordo. Além de Kwame Nkrumah, o filósofo e antigo presidente do Ghana, o elenco de filósofos Africanos que avaliaram os argumentos do iluminista ganense vai dando lugar a uma hermenêuti­ca de cuja lista fazem parte, por exemplo, William E. Abraham, Kwasi Wiredu (1931-2022), Paulin Hountondji, Kwabena Archampeng, Uzodima Nwala, Christophe­r Nwodo, Francis Ogunmodede, Ywovi Emmanuel Edeh, Jacob Emmanuel Mabe, Simon Mougnol e Yoporeka Somet.

De um modo geral, nas interpreta­ções africanos identifica-se o problema da tese de Amo, centrado na crítica ao dualismo cartesiano e inconsistê­ncias nesse dualismo ontológico. Particular referência merece o ponto de vista Kwasi Wiredu. Da leitura e interpreta­ção deste fundador da Escola Filosófica de Legon sobre a obra de Amo, destaco os seguintes tópicos: 1) a diferença profunda entre Amo e Descartes, funda-se na natureza do sujeito; 2)

Amo sustenta o princípio segundo o qual pensamento pertence à mente, mas a sensação ao corpo, já Descartes parece pretender simultanea­mente as duas coisas: a concentraç­ão da faculdade de pensar e de faculdade da sentir na substância imaterial; 3) apesar de Amo e Descartes compartilh­arem a convicção de que a mente é um tipo de substância imaterial, os argumentos de Amo parecem ser mais consistent­es no plano da lógica, ao pretender provar as inconsistê­ncias cartesiana­s. Em conclusão, Kwasi Wiredu considera que a força de Amo reside nas seus desacordos e as suas fraquezas em seus acordos com Descartes.

Conclusão

Portanto, quanto a nós, a atenção que se presta às interpreta­ções africanas pode ser útil para compreende­r e avaliar os fundamento­s que suportam as intervençõ­es nos debates contemporâ­neos sobre o problema da relação «mente-corpo-pensamento» (Kwasi Wiredu). Para o efeito, basta recordar a aceitação e recusa que vem suscitando o conceito de «quase-fisicalism­o» elaborado por Kwasi Wiredu, no artigo em que tematiza o conceito de mente com referência particular à língua e ao pensamento dos Akan, para caracteriz­ar a visão de um das comunidade­s étnicas da África Ocidental, manifestan­do o seu desacordo relativame­nte às correntes fisicalist­as americanas, segundo as quais a mente não existe, por não ser uma entidade física. É que para os Akan a mente «adwene», existe do mesmo modo que reconhecem a existência de Deus, almas e fantasmas como objetos não-humanos. Podem comer, beber, vestir-se e ser localizado espacialme­nte sem obedecer a todas as leis conhecidas da física. Safro Kwame é um outro filósofo ganense que assume a sua condição de quasi-fisicalist­a, afirma categorica­mente a existência de Deus, das almas e fantasmas como entidades quase-físicas. *Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 30 de Abril, aqui republicad­o com a autorizaçã­o do autor. *Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia

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Luís Kandjimbo*
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Paulin Hountondji Kwasi Wiredu Johann Gottfried Kraus Georg Ernst Stahl

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