O contemporâneo nas filosofias africanas
Entre as várias perspectivas das filosofias africanas, destacase a periodização contemporânea das correntes, teorias e tendências, justificando deste modo a existência de uma fulgurante historiografia da filosofia africana contemporânea. Por conseguinte, uma história da filosofia anticolonial africana contemporânea situa-se no núcleo do anti-eurocentrismo, na medida em que o colonialcentrismo é filho do eurocentrismo.
pensamento que perpassa a presente proposta de conversa aponta para a necessidade de uma apologia do conhecimento da História das Filosofias Africanas, no plural, de tal modo que seja possível reivindicar um lugar para o que se pode designar por Filosofia Anti-Colonial Africana Contemporânea, especialmente, a dos Cinco Países Africanos de Língua Portuguesa.
Contra o colonialcentrismo
A historiografia da periodização das filosofias africanas constitui um fecundo tema de debates à escala continental de que vem resultando o abandono do critério colonialcêntrico da seguinte tripartida divisão periodológica: «pré-colonial», «colonial» e «pós-colonial». Pode mesmo dizer-se que estamos em presença de uma «persistente crise de periodização», de acordo com o nigeriano Jonathan Chimokonan, líder da Escola Filosófica de Calabar, na Nigéria.
Em todo o caso, o ensino, a investigação e o conhecimento geral das filosofias africanas, nas suas diferentes manifestações, não é possível sem o domínio da respectiva história. Por essa razão, a periodização das suas tradições discursivas emerge como um dos mais importantes tópicos. Aí, entre as várias perspectivas, destaca-se a periodização contemporânea das correntes, teorias e tendências, justificando deste modo a existência de uma fulgurante historiografia da filosofia africana contemporânea. Por conseguinte, uma história da filosofia anti-colonial africana contemporânea situa-se no núcleo do anti-eurocentrismo, na medida em que o colonialcentrismo é filho do eurocentrismo.
Se, do ponto de vista das relações intercivilizacionais assimétricas, os sistemas coloniais das potências que tomaram parte na Conferência de Berlim de 1884/85 tem origem europeia, conclui-se que o colonialismo é eurocêntrico. Isto quer dizer que na semântica da referida tripartida divisão periodológica encontramos o centro de gravidade representado pelo adjectivo «colonial». As lógicas que o sustentam são eurocêntricas. Portanto, o colonial não pode constituir-se como cronótopo epistémico. Assim, a questão da titularidade do direito à descolonização, que pressupõe uma obrigação de descolonizar, não se pode confundir com a luta anti-colonial.
Historiografia e tradições discursivas
O historiador e filósofo congolês, Théophile Obenga, tratou da problemática da periodização numa perspectiva interdisciplinar, articulando a História e a Filosofia. Donde, a tradição filosófica africana compreende os seguintes períodos: 1) A filosofia egípcia faraónica do Antigo Império; 2) Os filósofos e pensadores de Alexandria, Cirene, Cartago e Hípona; 3) A filosofia magrebina; 4) As escolas filosóficas medievais de Tombuctu (Universidade de Sankoré), Gao, Djenné ; 5) O pensamento filosófico da Abyssinia, em que avulta o nome do filósofo Zara Yacob (1599-1692); 6) A filosofia moderna e contemporânea. Este é um período abrangente que inclui filósofos e problemáticas filosóficas dos últimos sessenta e três anos.
Na mesma linha está a articulação proposta pelo camaronês Nsame Mbongo, analisando-se a história da filosofia africana em três grandes ciclos: «Ciclo clássico»; «Ciclo medieval» e «Ciclo moderno e contemporâneo». Submetendo o tópico a uma avaliação metafilosófica, o ganense Safro Kwame procura repensar a história da filosofia africana, formulando quatro questões sobre os seguintes problemas: (1) Existência de filósofos africanos tradicionais; (2) Existência de uma filosofia africana tradicional; (3) Existência de uma filosofia africana moderna ou contemporânea; e (4) Definição da filosofia africana.
No entender de Jonathan Chimokonan, que cultiva um certo preconceito grafocêntrico, a história da filosofia africana pode ser analisada em duas grandes categorias, nomeadamente, a «Era Pré-sistemática ou Pré-alfabética» e a «Era Sistemática ou Alfabética». A primeira refere-se à cultura filosófica de África, aos pensamentos e pensadores africanos anónimos, incluindo o legado egípcio. O chamado período «pré-sistmático» caracteriza-se pela ausência de registo documental do pensamento. Por isso, Chimokonan considera que não se pode atestar a sua sistematicidade. A segunda categoria diz respeito aos períodos que, a partir da década de 1920, são marcados pelo regresso ao continente dos primeiros onze filósofos formados no Ocidente. Esta última categoria comporta quatro períodos: 1) Período inicial:1920–1960; 2) Período intermediário: 1960–1980; 3) Período posterior: 1980–1990; 4) Nova era, a contemporânea, a partir de 1990.
A afirmação de Chimokonan, segundo a qual o período «pré-sistemático» caracteriza-se pela ausência de registo documental do pensamento, é inconsistente e equívoca, quando confrontada com as narrativas sobre o legado egípcio, cujo conhecimento é hoje possível devido à descodificação da escrita hieroglífica dos textos clássicos e que perduram em papiros conservados.
Debate periodológico
No presente estado dos debates, não se pode ignorar a relativamente crescente produção bibliográfica sobre o tópico. Têm sido publicados muitos livros, capítulos de livros e artigos que abordam exclusivamente a problemática historiográfica. Gregoire Byiogo e Ademola Kazeem Fayemi são apenas dois autores que convocamos para efeitos de ilustração. Por exemplo, o gabonês Gregoire Byiogo admite uma periodização que, com base no modelo de T. Obenga, subdivide a história da filosofia africana em quatro momentos: 1) Período longo; 2) Período intermédio; 3) Renascimento filosófico moderno, com datas importantes, tais como 1945, publicação do livro de Placide Tempels (1906-1977); 1968, publicação do artigo de Fabien Eboussi-Boulaga (1934-2018), «Le Bantu Problematique»; 4) Quarto período, transição política de 1990 a 2005.
O nigeriano Ademola Kazeem Fayemi considera recusável a reprodução dos modelos ocidentais, obedecendo a designações como filosofia antiga, medieval, moderna e contemporânea. Essa é a razão por que, no entender de Ademola K. Fayemi, o cânone da periodização deve ter em conta experiências e identidades históricas de África, tendo como critérios as «divisões linguísticas oficiais e sub-regionais». Do nosso ponO to de vista, o recurso a estes critérios de periodização constitui um forte dispositivo operatório, na falta de melhores.
Ora, não há controvérsias de vulto a respeito da existência de uma filosofia africana moderna ou contemporânea. Mas Safro Kwame conclui que a história da filosofia africana depende da concepção que dela se tem e da multiplicidade das suas definições. Já as controvérsias sobre a periodização revelam que os períodos definidos por um determinado filósofo ou um grupo de filósofos para conformar as narrativas sobre o desenvolvimento histórico da filosofia africana depende da compreensão que se tiver.
Período contemporâneo
Como foi referido, o período contemporâneo tem vindo a ser um dos que mais suscita discussões historiográficas e metafilosóficas. Não há unanimismos, nem consensos. Abundam os desacordos. Alguns historiógrafos associam-no ao florescimento de diversas instituições que se consagram ao ensino, investigação e publicação de trabalhos académicos sobre a filosofia africana. Para outros autores, tais como o nigeriano Joseph Omoregbe, a filosofia africana contemporânea é basicamente formada por reflexões sobre a situação sociopolítica da era pós-independência, predominando uma filosofia política produzida por pensadores africanos.
Por sua vez, Sylvanus Nnoruka, Christopher Okoro e Ikechukwu Anthony Kanu, também nigerianos, sustentam que a evolução da filosofia africana contemporânea se inscreve no correspondente período da história ocidental, a partir da publicação do livro de Placide Tempels. É o chamado período dos «filósofos africanos profissionais» de que fazem parte Paulin Hountondji, Henry Odera Oruka (1944-1995), Peter Bodunrin (1936-1997), Kwasi Wiredu (1931-2022), C. S. Momoh (1943-2006) e outros.
Contemporâneo na filosofia ocidental
Em 2007, o filósofo e ensaísta italiano, Giorgio Agamben, proferiu uma li
ção no curso de Filosofia Teorética na Universidade de Veneza sobre o conceito de «contemporâneo». Forneceu diferentes definições de que se podem reter, pelo menos, duas. A primeira definição consiste em concentrar a focagem sobre o intempestivo, entendendo-se por «contemporaneidade», o que caracteriza o contemporâneo, como «uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias […] essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo».
Após a proposta de leitura de um poema do poeta russo, Ossip Mendelstam (1891-1938), o filósofo italiano considera que o «contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro». Para Giorgio Agamben, admite-se a possibilidade de o contemporâneo ser visto abordado numa perspectiva subjectiva. Não é necessariamente um período, uma delimitação do tempo. Pode significar um sujeito que se ocupa da narrativa e o estudo de um determinado período histórico. Portanto, o sujeito e a narrativa dos factos, representando, respectivamente, a perspectiva subjectiva do contemporâneo e a dimensão objectiva dos acontecimentos históricos nessa escala temporal são todos qualificados pelo conceito de contemporâneo.
No dizer de Emile Bréhier (18761952), tal como enuncia na sua monumental «História da Filosofia» de sucessivas reedições desde as primeiras décadas do século XX, a filosofia contemporânea é a que se desenvolve após 1930, caracterizando-se, entre outros aspectos, pela intensificação das relações internacionais entre os filósofos.
Entretanto, à pergunta - o que é a filosofia contemporânea? - os europeus respondem sempre como se a filosofia fosse digna de uma redução no singular, correspondendo-lhe o uso do artigo no feminino. Por isso, na senda de Giorgio Agamben, tal como qualquer outro europeu, responde Marc Leny, um outro francês. A filosofia contemporânea comporta «respostas dos filósofos que viveram no século XX às questões universais do sentido da vida, do bem e do mal, da verdade ou do melhor regime político» […], sendo «o conjunto de obras filosóficas escritas entre 1900 e 2000 ou, em sentido amplo, até os dias actuais.»
Realidades africanas contemporâneas
Escrevendo em 1991, sobre os problemas africanos contemporâneos que mereceram um tratamento particular de sua parte, o filósofo nigeriano Segun Gbadegesin operou com dois conceitos: «Realidade Transcendental e seu Significado» e «Realidades Africanas Contemporâneas». A «Realidade Transcendental e seu Significado» é um princípio que fundamenta a realidade contemporânea e fornece a sua explicação. Por sua vez, as «Realidades Africanas Contemporâneas», que se traduzem em experiências vividas, podem ser explicadas ao abrigo de certos princípios que emanam do primeiro. Assim, na segunda parte do seu livro, «African Philosophy. Traditional Yoruba Philosophy and Contemporary African Realities»[Filosofia Africana. Filosofia Tradicional Yoruba e Realidades Contemporâneas Africanas], Gbadegesin identifica três visões para a tematização da África contemporânea, designadamente, a visão religiosa, a visão cultural e a visão ideológica. Para debate dos problemas que conformam «Realidades Africanas Contemporâneas», Gbadegesin introduz três domínios analíticos: o económico, o político e o social.
Obedecendo às linhas de incidência do nosso tópico de conversa, tem interesse concentrar a focagem em duas das realidades políticas e culturais contemporâneas africanas, entre outras, das que propõe Gbadegesin. Procuraremos explorar o problema da descolonização por ser aquele que dá a oportunidade para abordar o modo como a geofilosofia africana contemporânea deve contar com as experiências e com o pensamento cultural, político e literário produzidos nos Países Africanos de Língua Portuguesa.
Descolonização e pós-etnofilosofia
Torna-se assim imprescindível ter em conta a Filosofia Anti-colonial dos PALOP cujos fundamentos suportaram a violência e a luta armada conduzidas pelos Movimentos de Libertação Nacional, representando populações de três territórios das cinco colónias portuguesas que, sob os auspícios da Organização das Nações Unidas e da Organização da Unidade Africana, tinham a legitimidade para efectivar o exercício do direito à autodeterminação e o direito à descolonização.
Nas décadas de 60 e 70 do século XX, a filosofia africana contemporânea foi abalada pelos efeitos do «grande debate», entre proponentes e defensores da etnofilosofia contra os seus oponentes. Os efeitos do debate deram origem à ressaca da «pós-etnofilosofia», tal como foi qualificado por Sanya Osha. Trata-se de um período em que se revela uma «crise de identidade da filosofia africana convencional» perante opções e diferentes orientações discursivas. É o tempo de propostas da múltipla descolonização: descolonização política, descolonização cultural, descolonização da mente, descolonização religiosa, descolonização literária e descolonização conceptual. A descolonização política devia conduzir ao surgimento de novos Estados independentes e soberanos. Dela derivariam outros processos descolonização cultural e descolonização conceptual.
Quando as razões que sustentavam o «grande debate» foi atingindo o esgotamento, se anunciava a ruína dos fundamentos da crítica da etnofilosofia. Em 1980, o filósofo ganense Kwasi Wiredu lançou o seu programa da descolonização conceptual e descolonização religiosa. Definiu a descolonização conceptual como sendo «a eliminação dos modos de conceptualização que, dominando o nosso pensamento, chegaram até aos nossos dias através da colonização e continuam a habitar o nosso pensamento devido à inércia, mais do que às nossas próprias opções reflexivas».
Entretanto, em 1981, o escritor queniano Ngugi wa Thiong’o tinha publicado um livro de ensaios com um título sugestivo: «Decolonizing the Mind. The Politics of Language in African Literature» [A Descolonização da Mente. A Política da Língua nas Literaturas Africanas]. Sobre as problemáticas que suscita já aqui fiz algumas referências, em texto anterior. A este propósito, o filósofo ganense Kwasi Wiredu considerava que a necessidade de descolonização conceptual na filosofia africana englobava vários conceitos, entre os quais de «ideia», «mente», «alma», «espírito» e «pensamento».
Contra-descolonização e anti-colonialismo
É verdade que a descolonização continua a desencadear debates nos meios filosóficos africanos. Fora das hipóteses de debates relevantes que possam ocorrer, parece oportuno compreender as ideias de Olufemi Taiwo, o assumido filósofo marxista nigeriano, que ataca as teses do ganense Kwasi Wiredu e do queniano Ngũgĩ wa Thiong’o sobre a descolonização, num dos seus mais recentes livros, «Against Decolonisation: Taking African Agency Seriously» [Contra a Descolonização: Avaliando
a Seriedade da Agentividade Africana], 2021.
Em virtude de o sentido dos conceitos e das palavras, bem como a sua a interpretação, constituírem dispositivos indispensáveis de qualquer aparato teórico e conceptual das filosofias africanas, pretendo ir mais longe. Na próxima conversa, passarei em revista a proposta de discussão formulada por Olufemi Taiwo sobre os argumentos de «descolonização da mente» de Ngũgĩ wa Thiong’o e «a necessidade de descolonização conceptual na filosofia africana» por Kwasi Wiredu. É que no contexto das problematizações das filosofias africanas contemporâneas, os processos de descolonização pressupõem lutas e antagonismos anti-coloniais que se opõem às hegemonias coloniais.
Portanto, o paradigma da crítica da descolonização e as respectivas contra-discursividades críticas, em África, devem pressupor o conhecimento dos tipos de antagonismos anti-coloniais. Donde, o anti-colonialismo se apresenta como o problema filosófico que mais legitimidade deve ter no «período contemporâneo», à luz do princípio da «Realidade Transcendental e seu Significado» de que fala Segun Gbadegesin. Neste sentido, como veremos, a contra-descolonização de Olufemi Taiwo parece ser uma questão mal colocada. Desde logo, há aí uma armadilha que nos conduz à lógica do sentido das frases. Está em causa a lei da dupla negação, segundo a qual uma expressão duplamente negada raramente apresenta o mesmo potencial lógico que a declaração original não negada. Assim, afirmar que se é «contra a descolonização», nega-se a negação da colonização. O mesmo seria dizer que negar o anti-colonialismo seria defender a bondade do colonialismo. *Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia