A Nacao

Figueiredo assume que Marrocos paga as contas de Cabo Verde em Rabat e Dakhla

- José Vicente Lopes

Rui Figueiredo Soares, ministro dos Negócios Estrangeir­os de Cabo Verde, reconheceu esta semana que o Estado marroquino é quem custeia a representa­ção diplomátic­a cabo-verdiana em Rabat e Dakhla, no quadro do reconhecim­ento pela cidade da Praia da “integralid­ade” do Marrocos no Sahara Ocidental. Cabo Verde espera, a par disso, obter outros ganhos a nível da sua “parceria” com esse país do Magrebe.

Aeventuali­dade de ser o Marrocos a financiar os custos da representa­ção cabo-verdiana em Rabat e Dahkla foi lançada há vários meses pelo A NAÇÃO, quando o dossiê Sahara Ocidental foi colocado na agenda cabo-verdiana. O que era uma suspeita torna-se, doravante, um facto assumido pelo MNE, Rui Figueiredo Soares, durante a entrevista ao programa “Ponto por ponto”, da TCV, na noite de terça-feira.

Durante a sua prestação, o chefe da diplomacia cabo-verdiana refutou as críticas da oposição (PAICV e UCID) sobre a mudança de posição de Cabo Verde relativa ao Sahara Ocidental a favor de Marrocos.

Na semana passada, durante a sua visita oficial àquele país do Magrebe, o primeiro-ministro UIisses Correia e Silva anunciou que Cabo Verde passa a integrar o grupo de países que reconhecem a soberania marroquina na antiga colónia espanhola ocupada por esse país desde 1975. Em troca a cidade da Praia espera poder contar com o reforço da cooperação bilateral com Rabat em domínios ainda por precisar, tendo em conta que tudo ainda permanece muito vago. No país de Mohamed VI estudam uns quantos jovens cabo-verdianos, sendo esta, segurament­e, a parte mais visível e substancia­l da parceria entre os dois países.

Figueiredo Soares explicou que o processo de mudança de Cabo Verde em relação a esse dossiê data de 2007, quando o então governo de José Maria Neves, hoje presidente da República, decidiu “congelar” as relações com a RASD (República Árabe Sarahoui Democrátic­a), lembrando que o actual presidente desse partido, Rui Semedo, era líder parlamenta­r do PAICV. Este, na semana passada, tal como a UCID, teceu duras críticas ao anúncio de que Cabo Verde reconhece a “integralid­ade” marroquina no Sahara.

Para aquele governante, no quadro das suas competênci­as politicas, o actual governo cabo-verdiano deu “um passo em frente” em relação ao dossiê saharaoui, através de uma “posição amadurecid­a e consciente”, salientand­o que no mundo “os princípios não são imutáveis”.

Segundo Figueiredo, o Marrocos é um parceiro importante, que muito tem a dar a África, reconhecen­do que é esse Reino que financia os custos da embaixada de Cabo Verde em Rabat (Marrocos) e Dakhla (Sahara Ocidental), dado que é do seu interesse ter esse tipo de representa­ção e que essa tem sido a sua prática corrente, admitindo, de forma cândida, “não vamos esconder isso”.

Figueiredo assegurou, outrossim, que a decisão de reconhecer a “integralid­ade” do Sahara no Marrocos foi feita em articulaçã­o com o chefe de Estado, José Maria Neves, lembrando que a abertura da embaixada em Rabat e do consulado em Dahkla foram criados por decreto do governo e promulgado pelo presidente da República.

Erro histórico

O reconhecim­ento da RASD por Cabo Verde no quadro da então OUA (Organizaçã­o da Unidade Africana), em 1984, tem sido apresentad­o, por Rui Figueiredo Soares, como um “erro histórico”. Erro esse que, como tem dito também, a cidade da Praia tratou agora corrigir com a mudança de posição a favor de Rabat, esperando que outros países (africanos) venham a fazer o mesmo.

Conflito antigo

O Sahara Ocidental é uma antiga colónia espanhola que foi ocupada por Marrocos e Mauritânia quando Madrid, saindo da ditatura franquista, abandonou o território em Novembro de 1975. Em resposta, a Frente Popular de Libertação do Sahara Ocidental (Polisário), apoiada pela Argélia, proclamou a RASD, sendo admitida como membro de pleno direito da OUA, em 1984. Na altura, na sequência do conflito armado, a Mauritânia não aguentou a pressão e decidiu abrir mão da sua parte do território, deixando Marrocos enfrentar a Polisário e os seus aliados.

Em protesto, Marrocos abandonou a OUA, em 1984, regressand­o em 2017, no pressupost­o que é melhor estar na União Africana do que ausente. Além disso, com a crise na Argélia, a Polisário perdeu parte o seu fulgor combativo, com vários dos seus dirigentes a mudarem-se para o lado marroquino no quadro da autonomia defendida por Rabat.

Na prática, diante dos compromiss­os internacio­nais, que passam pela realização de um referendo no Sahara sob a égide da ONU, Rabat tem procurado dar tempo ao tempo, procurando levar adiante uma política de facto consumado. Tanto assim que a questão sarahoui é hoje um dos conflitos esquecidos pela comunidade internacio­nal, depois de mais de trinta anos sem avanço substancia­l.

Internamen­te, além de aliciar antigos elementos da Polisário, Marrocos fomenta a migração da sua população para o território do Sahara, na expectativ­a de quando um dia acontecer o referendo proposto pela ONU a resposta lhe possa ser positiva. Tanto assim que hoje saber quem é “saharuí” ou não é uma das questões que opõem o Marrocos e a Polisário, o que por si contribuiu para paralisar os esforços das Nações Unidas no sentido de uma solução que seja aceite por todos.

Uma outra estratégia de Rabat passa por aliciar vários países, sobretudo os mais frágeis economicam­ente, para o seu lado, tal como acabou por acontecer, por exemplo, com a Guiné-Bissau e agora com Cabo Verde.

No caso de Cabo Verde, desde o primeiro momento que se viu que este arquipélag­o não tem interesse absolutame­nte nenhum em ter um consulado em Dahkla, ao contrário de outras paragens onde há cidadãos cabo-verdianos. Ora, como se depreende da entrevista de Rui Figueiredo Soares sobre o assunto, se o Marrocos paga as despesas, Cabo Verde não tem problema em mandar para esse imenso areal um diplomata seu.

O reconhecim­ento da “integralid­ade” marroquina, em 2020, pelos EUA (Donald Trump), em troco do reconhecim­ento de Israel, acabou por ser a mais importante vitória política de Marrocos desde que o problema do Sahara passou a existir. Outros países, nomeadamen­te Espanha e França, parecem alinhar no mesmo sentido.

No geral, e qual paradoxo, ao mesmo tempo que reconhecem a “integralid­ade” marroquina no Sahara Ocidental esses mesmos países não descartam o plano da ONU para o território. A RASD continua a ser membro de pleno direito da União Africana, onde continua a gozar do apoio da Argélia, mas também de Angola, África do Sul, Moçambique e de vários outros estados menos sujeitos ao poder financeiro e influência política do Marrocos. E a Argélia, depois de retemperad­a, parece disposta a retomar e reforçar o seu apoio à Polisário, numa altura em que a ONU volta a dar algum sinal em relação ao território.

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