A Nacao

Primeiro libanês em Cabo Verde

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«As lojas chinesas chegaram graças aos meus produtos»

A mesma fome que levou os cabo-verdianos a deixar as ilhas, também levou milhões de libaneses a abandonar o seu país, ao longo dos séculos XIX e XX, por exemplo. Quando Hussein, o pai de Kamal Hojeige, deixou a cidade de Tyr, aos 19 anos, no início do século passado, num barco francês, pensou que ia finalmente para a América, juntar-se aos tios. Mas, após escalar o porto de Marselha, a viagem chegou ao fim em Dacar, no Senegal. Restou-lhe rumar à Kaolack, cidade do interior dessa então colónia francesa, onde casou e estabelece­u um negócio de tecidos e nasceu Kamal e os seus nove irmãos. Kamal fez o liceu em Kaolack e depois conseguiu um visto para estudar agronomia na Bélgica.

Como é que descobriu Cabo Verde?

É uma longa história. Em criança já conhecia alguns cabo-verdianos do Senegal, porque havia algumas famílias, em Kaolack. Depois de terminar o curso na Bélgica fui conhecer o Líbano, a terra dos meus antepassad­os, mas depois recomeçou a guerra civil, que já vinha desde 1975.

De regresso ao Senegal, seguindo os passos do meu pai, lancei-me também no comércio e abri uma loja. Mas quatro anos depois houve um conflito étnico, entre o Senegal e a Mauritânia, com mortes, massacres dos dois lados, em especial no interior. Mesmo nascidos no Senegal, ficámos com medo, quando vimos o que aconteceu com os mauritania­nos de Kaolack, às suas lojas, incendiada­s. Preparei tudo para ir para o Canadá, comecei a vender todos os bens.

A minha mulher foi para o Líbano e de lá para o Canadá, com os nossos filhos. E foi nesse momento que ouvi falar numas ilhas, não muito longe da costa do Senegal, que acabavam de ter eleições democrátic­as. O novo governo queria abrir o país ao mundo. Lembrei-me de alguns desses amigos de Cabo Verde. Eu praticamen­te já não tinha nada no Senegal e, antes de viajar para o Canadá, decidi então vir dar uma vista de olhos, para conhecer e ver se haveria alguma oportunida­de de negócio.

E qual foi a primeira impressão?

Olhe, vi que já havia uma padaria francesa, La Parisiene, a mais moderna de todas.

Isso foi em que ano?

Cheguei em 1993, há trinta anos, portanto. Instalei-me no Hotel Marisol [hoje extinto e demolido, na Chã de Areia, cidade da Praia]. Vim apenas por duas semanas, para ver o ambiente, com um olhar de comerciant­e. Reparei que havia algumas casas comerciais, Bossa Nova, Adega, Manuel dos Anjos, etc., mas poucas, pequenas, pouca oferta, sempre vazias. Era tudo muito caro, quatro ou cinco vezes mais caro que no Senegal. Percebi a razão: como havia pouco, os comerciant­es aumentavam os preços para ganharem o máximo possível.

Na altura ainda não havia lojas chinesas?

Nada. Na época, alguns chineses tinham ficado no país e aberto alguns restaurant­es, talvez uma dezena, mas os clientes eram outros chineses que também tinham vindo para a construção de edifícios financiado­s pela cooperação chinesa, como o Palácio do Governo. Os cabo-verdianos não os frequentav­am.

Mas havia dinheiro? Circulava no mercado?

Sim, notei que havia. Mas não havia produtos, não havia onde gastá-lo. Então pensei, antes de ir para o Canadá, vou tentar a minha sorte, tentar fazer qualquer coisa. Depois de ter vendido tudo no Senegal, restava-me o equivalent­e a 9 mil euros.

Não fez nenhum crédito bancário?

Não trabalhava com bancos, de início. Só com dinheiro vivo. Desembarcá­vamos no aeroporto e o dinheiro era transporta­do em pastas ou malas, sem qualquer problema. Depois, íamos trocar no Sucupira. A primeira loja que tive foi a de Mário Ambrósio, na Fazenda, com

quem falei e depois de um pequeno adiantamen­to, fiquei com ela. Depois, descobri que a Agência Arca Verde tinha barcos e fretei um, a crédito, também, com um adiantamen­to de dois, três mil euros, para ir a Dacar buscar mercadoria. Regressei a Dacar e visitei fábricas de coisas exportávei­s para Cabo Verde.

Eu tinha bom nome no mercado e contactos, porque quando me preparei para ir para o Canadá acertei todas as minhas contas em Dacar. Por isso, não tive problemas em tomar mercadoria para pagar depois. Enchi o porão, que levava 300 toneladas, de produtos de plástico, sobretudo sandálias, mas nada alimentar, tudo no valor de 300 milhões de Francos CFA, o equivalent­e a 50 mil contos. Apanhei o avião e voltei para a Praia, para esperar o barco. Meti tudo num armazém, mas só tirei o que era calçado, as sandálias, etc. e outros produtos baratos. Não havia dinheiro para desalfande­gar mais nada, no momento. Vieram os camiões e saíram cheios. Coloquei o meu preço de grossista, que era três ou quatro vezes mais barato do que o praticado. E palavra puxa palavra, em pouco tempo os comerciant­es e as rabidantes do Sucupira vieram em força. No dia seguinte, tinha uma fila de 100 metros e tive de chamar a polícia da Fazenda para controlar a confusão. Em dois, três dias, despachei o meu stock de sapatos e sandálias e fui buscar o resto que estava na Alfândega. Toda a gente me queria comprar. Nem sei explicar, é como se o país estivesse sedento de coisas novas e baratas, como pratos, pratos, copos. Em menos de duas semanas o barco estava vendido. Paguei a toda a gente e recomecei a operação, durante mais seis meses. E foi quando pensei em ir à China buscar outros produtos também baratos.

Quais eram as maiores carências, em Cabo Verde?

Havia várias, mas lembro-me particular­mente dos brinquedos. Algumas pessoas chegaram até a felicitar-me, porque as famílias não tinham condições para comprar brinquedos para os seus filhos. Na altura, um pequeno brinquedo, no Bossa Nova, podia custar 1500 escudos, o que era muito para uma família. Para não dizer que eram poucos os que havia no mercado. Quando trouxe o primeiro contentor da China, eu tinha brinquedos no mercado a 100 e 150 escudos – bonecas, carrinhos - e todos vinham comprar-me.

Mesmo os chineses?

Não havia comerciant­es chineses. De certa forma, eu sou o responsáve­l pelo aparecimen­to das lojas chinesas. Algum tempo depois de eu chegar, o proprietár­io chinês do restaurant­e Panda veio ter comigo e disse-me que o restaurant­e não estava a dar nada e viu que eu vendia muitos produtos do seu país; perguntou-me se ele o transforma­sse numa loja de comércio eu lhe venderia mercadoria chinesa. Eu disse-lhe que sim, naturalmen­te, sem problema.

E os comerciant­es cabo-verdianos?

Na altura, propus também fornecer vários comerciant­es cabo-verdianos. Mas não quiseram. Na verdade, percebi que eu os incomodava e que o que queriam era juntar-se para me boicotar os negócios. Nem um cabo-verdiano alguma vez falou comigo nesse sentido, de lhes fornecer também. Mas, no fundo, eu compreendo-os. Não os levei, nem os levo a mal.

Eram conservado­res, não queriam assumir riscos?

Talvez por uma questão de mentalidad­e. O primeiro chinês vinha quase todos os dias, vendia e tornava a levar, voltava, pagava-me em cash, cerca de 600 contos pela mercadoria, 15 dias depois o segundo chinês fechou também o restaurant­e e logo depois vieram outros chineses falar comigo. Três ou quatro meses depois, já quase não havia restaurant­es chineses na Praia. No seu lugar, surgiram as lojas de comércio. Tudo graças aos meus produtos chineses.

Isso foi em que ano?

Por volta de 1994, 1995… Depois, como viram que as coisas funcionava­m bem aqui e como tinham família lá na China, trouxeram a família e as mercadoria­s, uma coisa levou à outra e chegaram em força. Três ou quatro nos depois, abandonei esse mercado e deixei esses produtos para eles.

E acabou por desistir do Canadá.

Um dia, a minha mulher ligou-me a perguntar, afinal quando é que eu ia para o Canadá. Respondi-lhe que tinha havido uma mudança de planos. Era ela que vinha para Cabo Verde. Abrimos a primeira loja de Kyhm Negoce na Fazenda e, dois anos depois, em São Vicente. Mas três ou quatro anos depois, abrimos mais lojas, a Fenícia, e começámos a especializ­ar-nos em produtos de marca, mobiliário, eletrodomé­sticos, etc., para construir uma nova imagem. Hoje estamos no Sal, São Vicente, Santiago, Fogo e Santo Antão. Expandimos os negócios de importação e abrimos também a Caboplast, fábrica de produtos de plástico, na Achada Grande.

A produção é exclusiva para o mercado nacional?

Sim. O facto de Cabo Verde ser formado por ilhas, dificulta qualquer exportação. Os fretes, o transporte, aéreo ou marítimo, encarecem essa tentativa. Por isso, eu defendo que as fábricas montadas aqui devem ser direcciona­das para produzir para o mercado interno. Não vejo viabilidad­e na exportação.

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Kamal, 6 anos, com irmãos, no Senegal
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