A Nacao

Di Lonji, a história de uma vida que vem de longe

- Sara Andrade e José Mário Correia

Élida Almeida está de volta, com actuações na Praia e no Mindelo. E vem de bem longe, do Capitólio, em Lisboa, depois de ter estado em Paris, na sala Pan Piper, empunhando “Di Lonji”, seu novo trabalho – o quarto disco de estúdio –, recheado de 14 temas gravados entre Cabo Verde, Portugal e Estados Unidos, mas misturados e masterizad­os em Paris, com produção e arranjos de Hernani Almeida e do costa-marfinense Momo Wang.

Dir-se-ia que “Di Lonji” é a sua história. História de sofrimento e dor, de sacrifício, de persistênc­ia, uma narrativa de vida que ela não se cansa de partilhar: “Vim de Matinho, que fica a cerca de 70 km da cidade da Praia. Digo isso nas minhas músicas. Caminho longe, rodeado de rochas nuas. Quando chove temos um verde bonito, quando vem a estiagem é aquela rocha seca, desnuda e castanha. Sou uma menina que veio das ladeiras, que se amparava nos bananais e nos canaviais, aguentando-se nas canelas para alcançar o destino, no sopé das montanhas…”.

E prossegue: “Cresci lá (em Matinho), no meio de nada, não havia asfalto, tinha de percorrer, entre os pedregais e a terra-bufa-bufa, até chegar à cidade de Pedra Badejo – a terra de Katchás, Nha Nácia Gomi e Manusinho – no litoral”.

Antecipand­o o futuro

Élida Almeida já não é a Deisy de há 9 anos, a garota quimérica que um dia, agarrada à sua guitarra – quase a solo –, bradou aos céus, a partir da ilha do Maio, “Num Padáz di Papel”, com aquela voz semi-rouca, para quem a quisesse ouvir e escrutinar o alcance da sua cantiga, particular­mente aqueles que dela duvidavam. Entende-se agora o ditame de 2014, uma antecipaçã­o do futuro, do sucesso que vislumbrav­a. E conseguiu-o: “Me parece que sou a menina que conquistou a atenção das pessoas em Cabo Verde, na diáspora e no mundo”.

Sim, ainda muito nova sorriu-lhe o prémio “Decouvert” da RFI 2015 com a música “Ntá Konsigui” – a transforma­ção de todo um momento de angústia que vivera, da tristeza que a dilacerava por dentro, das suas emoções viscerais. O bálsamo aqui – diz ela – “foi a oportunida­de que o prémio me deu de descobrir o meu continente, de viajar para 17 países, durante quase três meses de ‘tournê’, uma aventura incrível. Todos os dias tinha um ‘challenge’ diferente, realidades completame­nte díspares da nossa. Isso conferiu uma marca especial à minha vida e reflete hoje na minha forma de fazer música, de perceber e conhecer a África e, sobretudo, ao papel que tenho que desempenha­r no meio de tudo isso”.

O Decouvert da RFI veio bem cedo, na melhor altura, vangloria-se ela: “Foi o input de que eu precisava, um prémio que significa muito, um muito que não posso explicar. Eu era uma menina de 21 anos, que tirou um disco com 90% de músicas e temas da sua autoria, num país de autores esplêndido­s. Eu sentia muita pressão, tinha medo de as pessoas, ao ouvirem o disco, dizerem que eu estava a brincar com elas. Mas não foi isto que aconteceu, os cabo-verdianos abraçaram o disco, disseram – e dizem – que gostam. Isso deu-me muita confiança e trabalhou muito a minha autoestima”.

Não há duas sem três

Depois veio a distinção de artista mais premiada na VI Edição dos Cabo Verde Music Awards (CVMA-2016), uma gala onde são distinguid­os, anualmente, os melhores da música cabo-verdiana no país e na diáspora. E como não há duas sem três, encontrar-se-ia por aí, num dia qualquer, com um produtor que acreditou no seu talento e que “fez da minha pessoa aquilo que sou hoje”.

Aqui ela fala do seu director artístico neste último trabalho discográfi­co, o arguto manager Djô da Silva, o timoneiro de Cesária Évora, esta sim, a Diva maior de quem ela nutre admiração, orgulha-se, venera e cantarola nos seus discos. Mas de quem tenta evitar comparaçõe­s, prefere ser ela mesma, seguir seu instinto e seu destino, seu próprio caminho, lograr uma marca própria, chegar aos céus pela própria voz.

“Uau, uma linda história, eu também quero”, interrompe-lhe Bianca Cardoso, a apresentad­ora da Rádio Alfa que a abordou, para depois voltar a questioná-la: “Será que as oportunida­des são iguais para todos?”

E ela responde: “É claro que uns têm de trabalhar três vezes mais do que os outros, como eu denuncio através da minha nova música ‘Mulata’, que retrata tudo isso, essa coisa de eu aparecer, gostarem da minha pessoa, mas dizerem: ‘atenção, tudo isto não vai ser fácil porque não és filha de tal pessoa, não moras num lugar nobre. Então, para conseguire­s este privilégio terás de trabalhar o triplo. Conseguir depende de muitas coisas, do factor sorte, mas tens de estar preparada também”.

Um reencontro introspect­ivo a dois, de Élida para Élida

“Quatro discos. Será o fim da linha?”, prossegue a apresentad­ora: “Não! É claro que já consegui muitas coisas, mas ainda o caminho é muito mais longe do que isso, consegui tocar o coração dos cabo-verdianos, ser acarinhada de Santo Antão a Brava, e em todas as ilhas por onde passei fui sempre recebida com muita estima, por pessoas adultas e crianças. Ganhei alguns prêmios e dinheiro que também ajuda um pouquinho. Mas cada vez que começamos a ter anos de experiênci­a e quilómetro­s de estrada, a nossa visão para tudo aquilo que é o exterior, enfim, os desafios e as competiçõe­s que existem lá fora, acabamos por mudar e ver que tudo é muito mais complicado e que estamos cada vez mais longes ainda de conseguir chegar lá”.

Olhando agora “de longe”, Élida recorda-se da campanha “Adolescênc­ia Primeiro Gravidez Depois”, do ICIEG, e vira-se para ela, num reencontro introspect­ivo a dois, entre o passado e o presente: “Não soube priorizar a escola e ter consciênci­a de que poderia deixar a gravidez para depois ou namorar prevenida…, hoje diria duas coisas à Deisy que eu fui… e faria diferente. Aos 29 anos, sinto-me velha, fui mãe aos 16 anos, tenho um filho de 13, mas voltaria a fazê-lo hoje, aprendi muito, mudei minha forma de pensar”.

Acompanhe a entrevista na integra clicando no link https://www.youtube.com/watch?v=X2S7Mszq_Kw

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