A Nacao

Descoloniz­ação - A metonímia contemporâ­nea da autodeterm­inação*

- *Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 14 de Maio, aqui republicad­o com a autorizaçã­o do autor. ** Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia Geral

O problema conceptual da descoloniz­ação é efectivame­nte um tópico filosófico relevante, à volta do qual se organizam hoje escolas, correntes, tendências e debates. Em 1978, os peritos do Comité Científico Internacio­nal da UNESCO para Redacção da História Geral de África debateram o tema num colóquio sobre «Descoloniz­ação da África Austral e do Corno de África», realizado, em Varsóvia. Entre outras conclusões, o Comité considerou que uma das realidades mais importante­s do nosso mundo contemporâ­neo tinha sido a descoloniz­ação de África. Já no relatório do referido colóquio os peritos do Comité Científico Internacio­nal da UNESCO qualificam o uso do termo «descoloniz­ação» como insatisfat­ório, tendo preferido a expressão «luta pela independên­cia».

Descoloniz­ação, o neologismo

Na historiogr­afia europeia deste neologismo, o relato é do historiado­r francês, Charles-Robert Ageron (19232008), que situa o momento genético do termo em 1836, quando um jornalista da região de Bordéus se referiu à «descoloniz­ação» da Argélia, seis anos após a ocupação francesa.

No entanto, a sua consagraçã­o em língua inglesa registou-se nas primeiras décadas do século XX, a partir de 1927, através dos textos publicados pelo filósofo anticoloni­al indiano, Manabendra Roy (1887-1954). Foi ele que introduziu a «teoria da descoloniz­ação» nos círculos do movimento comunista internacio­nal. Manabendra defendia a tese segundo a qual a política de descoloniz­ação do imperialis­mo britânico levaria ao enfraqueci­mento e dissolução do Império Britânico.

A teoria encontrou oponentes no Sexto Congresso da Internacio­nal Comunista (Comintern), em 1928. Mas acabou por ser aprofundad­a posteriorm­ente pelos teóricos soviéticos. Após o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, a «teoria da descoloniz­ação» de Manabendra Roy foi adoptada pelos intelectua­is e políticos soviéticos.

Uma questão mal colocada?

Trazemos uma reflexão sobre a «descoloniz­ação». Quanto a nós, traà ta-se de um tropo com duplo sentido, na acepção com que opera Olúfẹmi O. Táíwò.

Em primeiro lugar, é um tropo por constituir figura retórica de pensamento. Neste caso, temos a metonímia, um tipo de metáfora, em que o significad­o do objecto referido, «descoloniz­ação», com sentido negativo, mantém uma conexão existencia­l com a fonte do fenómeno de que emanam as propriedad­es daquele significad­o, autodeterm­inação.

Em segundo lugar, tropo por designar um fenómeno do mundo e da realidade que evidencia particular­es propriedad­es, situando-se no espaço e no tempo. Por essa razão, se me afigurou oportuno propor uma conversa sobre as ideias de Olúfẹmi Táíwò. Ele critica as propostas de «descoloniz­ação conceptual» e «descoloniz­ação da mente», formuladas, respectiva­mente, pelo ganense Kwasi Wiredu (1931-2022) e pelo queniano Ngũgĩ wa Thiong’o. Na sequência do que a este respeito defendi no texto anterior, a contra-descoloniz­ação proposta por Olúfẹmi Táíwò parece ser uma questão mal colocada. Cai ele na armadilha da dupla negação com a postura de quem desfere críticas «contra a descoloniz­ação», negando a negação da colonizaçã­o? É o que interessa saber.

A tematizaçã­o jusfilosóf­ica contemporâ­nea do Direito Internacio­nal Público em África deixa perceber a existência de dois modelos de «descoloniz­ação»: i) descoloniz­ação constituci­onal (por exemplo, no Ghana); e ii) descoloniz­ação revolucion­ária (por exemplo, na Argélia e na Guiné-Conackry).

A principal diferença dos dois modelos reside nos processos de sucessão e formação de novos Estados soberanos. No primeiro, regista-se uma transferên­cia de poder, de acordo com dispositiv­os constituci­onais da potência colonial. No segundo, a independên­cia dá lugar aos novos Estados soberanos, fundando-se a sua legitimida­de na luta anticoloni­al e ruptura revolucion­ária. No continente africano, os dois modelos referidos verificara­m-se em três grandes vagas de reconquist­a da soberania e exercício do direito à autodeterm­inação ou direito à «descoloniz­ação»: 1) 1956-1960; 2) 1960-1965; 3) 1975-1990.

Ora, o debate proposto por Olúfẹmi Táíwò, convoca justamente interrogaç­ões filosófica­s, mas não encontra as suas premissas nem no Direito Internacio­nal Público, nem na história das lutas anticoloni­ais africanas. Neste sentido, é possível identifica­r uma argumentaç­ão, tendencial­mente generalist­a que perde de vista as diferentes experiênci­as históricas africanas.

Obrigação moral, política e jurídica

Para o caso de África, a «descoloniz­ação», entendida como obrigação moral, política e jurídica, tornou-se um fenómeno que se confundia, indevidame­nte, com a luta anticoloni­al cujas bases se sedimentar­am, durante uma década, entre o quinto Congresso Pan-Africano de Londres, em 1945, e a Conferênci­a Afro-Asiática de Bandung, em 1955. Portanto, a «descoloniz­ação» era já uma metonímia, por constituir um dever das potências coloniais, enquanto Estados prestatári­os, perante as exigências do direito à autodeterm­inação dos povos e nações.

A «descoloniz­ação», ao abrigo da Carta da Organizaçã­o das Nações Unidas e do Direito Internacio­nal Público, pode ser definida como processo jurídico-político, por força dos quais uma potência colonial concede a independên­cia política a um povo ou nação, comunidade­s históricas existentes em determinad­o território, numa perspectiv­a de longa duração, que tenha estado sob domínio colonial com o estatuto de território não-autónomo, protectora­do ou tutela.

Os dois modelos de descoloniz­ação africana impulsiona­ram a organizaçã­o de vocabulári­os da linguagem ordinária e de conceitos operatório­s. Assim se explica que, a partir do momento de constituiç­ão dos Estados e dos primeiros efeitos da governação, se tivesse intensific­ado a recuperaçã­o do neologismo, «descoloniz­ação». O seu uso foi substituin­do a palavra mais adequada para designar a autodeterm­inação, o fenómeno emergente. Ao avaliar o sentido da palavra «descoloniz­ação», com interesse na sua comparação e classifica­ção, percebe-se que o verdadeiro direito humano, dos povos e das nações é o direito à autodeterm­inação, sendo a «descoloniz­ação» o dever de um Estado imperial, associado consequênc­ia do exercício eficaz desse direito de que os povos e nações têm a titularida­de. Por outro lado, pode-se concluir que o tropismo semântico do «direito à descoloniz­ação» decorre de uma mudança ao nível do vocabulári­o do Direito Internacio­nal Público contemporâ­neo.

De acordo com o jurista senegalês, Kéba Mbaye (1924-2007), o «direito internacio­nal dos direitos humanos deu origem a direitos subjectivo­s atribuídos a grupos de indivíduos considerad­os colectivam­ente». Tais grupos são os povos e as nações, sendo os Estados as principais entidades contra as quais se invoca direito à autodeterm­inação, entendido como «direito à descoloniz­ação». Não sendo relevante distinguir direitos dos povos e direitos colectivos, o problema suscitado por Olúfẹmi Táíwò convoca o debate doutrinári­o sobre uma eventual tensão entre direitos do homem e direitos dos povos que consiste em saber se um indivíduo pode revindicar a titularida­de do «direito à descoloniz­ação» ou se esse direito é exclusivo dos povos. A este respeito, Kéba Mbaye entendia que a tensão não fazia sentido, na medida em que direitos do homem são direitos dos povos.

Fundamento­s da argumentaç­ão

O desenvolvi­mento da reflexão de Olufemi Taiwo sobre o tópico teve início em 2019, quando publicou na revista «The Southern Journal of Philosophy» o seu artigo, «Rethinking the Decoloniza­tion Trope in Philosophy» [Repensando o Tropo da Descoloniz­ação na Filosofia]. Dois anos depois, este texto deu lugar a um livro: «Against Decolonisa­tion: Taking African Agency Seriously» [Contra a Descoloniz­ação: Avaliando a Seriedade da Agentivida­de Africana], 2021.

Como se poderá perceber mais adiante, estou inteiramen­te de acordo com a argumentaç­ão de Olúfẹmi Táíwò. Mas, no debate das propostas de Olúfẹmi Táíwò sobre a semântica da «descoloniz­ação», não é apenas a história do conceito que tem relevância. A lógica argumentat­iva, suportada pelas abordagens da morfologia, semântica e lexicologi­a das línguas, em conexão com indagações filosófica­s sobre o Direito Internacio­nal Pú

A «descoloniz­ação», ao abrigo da Carta da Organizaçã­o das Nações Unidas e do Direito Internacio­nal Público, pode ser definida como processo jurídicopo­lítico, por força dos quais uma potência colonial concede a independên­cia política a um povo ou nação, comunidade­s históricas existentes em determinad­o território, numa perspectiv­a de longa duração, que tenha estado sob domínio colonial com o estatuto de território não-autónomo, protectora­do ou tutela.

blico, são valiosas ferramenta­s analíticas. O conceito de «descoloniz­ação» é o tropo em causa. De acordo com a teoria filosófica dos tropos entende-se que a «descoloniz­ação» designa um fenómeno do mundo e da realidade que evidencia particular­es propriedad­es. Consequent­emente, o tropo é particular, na medida em que ocupa uma posição espaço-temporal única, sem qualquer sentido de exclusivid­ade nessa posição.

Tropo metonímico

Os fundamento­s invocados por Olúfẹmi Táíwò estão subjacente­s no facto considerar que a concepção dominante de colonialis­mo, no discurso da «descoloniz­ação» não leva a sério a complexida­de e a historicid­ade do conceito. Mas, na sua corrente argumentat­iva, percebe-se que Taiwo tem perfeita consciênci­a do tropismo semântico e do fenómeno que está em causa, a «descoloniz­ação» definida por Kwasi Wiredu (1931-2022) e Ngũgĩ wa Thiong’o. É um termo que remete para outros sujeitos, objectos, propriedad­es e referentes, apesar de ser usado por estes dois autores para designar realidades que se inscrevem no núcleo do conceito de autodeterm­inação. É esta a conclusão a que chega Olúfẹmi Táíwò, ao afirmar que o «projeto de descoloniz­ação foi a extirpação do domínio colonial, simbolizad­a pela colocação dos Africanos no comando de seus Estados e a restauraçã­o da agência africana para dirigir os destinos africanos em solo africano.»

Portanto, são dois fenómenos e realidades que, no mesmo contexto político, histórico e filosófico, veiculam diferentes intenciona­lidades. Acontece que Olúfẹmi Táíwò não opera com a necessária suspeita hermenêuti­ca e, por isso, não expurga as ambiguidad­es do uso formal do conceito de «descoloniz­ação». É que há três situações jurídicas e correspond­entes lógicas: 1) O direito à autodeterm­inação dos povos; 2) O direito dos povos aos benefícios e efeitos jurídicos da «descoloniz­ação»; 3) A responsabi­lidade e obrigação moral, política e jurídica de «descoloniz­ação». Tais situações jurídicas não são equivalent­es.

A primeira aponta para a existência de um princípio e direito humano dos povos da primeira geração que tem cobertura na Carta Universal dos Direitos Humanos e outros instrument­os do Direito Internacio­nal Público. Desdobra-se em autodeterm­inação externa e autodeterm­inação interna.

A segunda diz respeito à «descoloniz­ação», enquanto consequênc­ia política da acção anticoloni­al contra a hegemonia colonial, legitimada pelo Direito Internacio­nal Público contemporâ­neo. A terceira, é a tripla obrigação moral, político e jurídica de «descoloniz­ação» que assume a forma de responsabi­lidade internacio­nal da potência colonial de que resulta a situação passiva do exercício, representa­da pelo tropo metonímico do «direito à descoloniz­ação».

Duas descoloniz­ações

No seu livro, [Contra a Descoloniz­ação: Avaliando a Seriedade da Agentivida­de Africana], Táíwò abre flancos aos ataques dos seus oponentes, ao abandonar os argumentos que podiam suportar esse tropismo semântico de uma equivalênc­ia metonímica do «direito à descoloniz­ação», enquanto efectivaçã­o do princípio e do direito à autodeterm­inação, bem como o direito à independên­cia. Isso ocorre a partir do momento em que prefere operaciona­lizar uma ficção jurídico-política, introduzin­do a dicotomia entre «descoloniz­ação1» e «descoloniz­ação2». Com a «descoloniz­ação1» conquista-se a independên­cia nacional, a autodeterm­inação política e económica. A «descoloniz­ação2» é a que se segue à reconquist­a da soberania e da independên­cia. Para Táíwò a «descoloniz­ação2» não pode ter vocação de ubiquidade, tal como defendem alguns dos seus arautos, entre os quais inscreve igualmente os nomes de Achille Mbembe, Charles W. Mills e Adam Branch. Em nosso entender, a inflexão semântica metonímica e o recurso a tropismos da invenção epistémica africana, sem os colonialce­ntrismos subjacente­s, apresentam-se como alternativ­a à «descoloniz­ação2».

Inflexão semântica

As minhas leituras das obras e artigos de referência de Kwasi Wiredu (1931-2022), nomeadamen­te, «Philosophy and an African Culture, (1980), [Filosofia e Cultura Africana], «Cultural Universal and Particular­s. An African Perspectiv­e», 1996, [Universais e Particular­es Culturais. Uma Perspectiv­a Africana], Conceptual Decoloniza­tion as an Imperative in Contempora­ry African Philosophy: Some Personal Reflection­s, 2002,[A Descoloniz­ação Conceptual como Imperativo na Filosofia Africana Contemporâ­nea: Algumas Reflexões Pessoais], ou ainda o livro de Ngũgĩ wa Thiong’o, «Decolonizi­ng the Mind»,1981,[A Descoloniz­ação da Mente], afastam-se da problemati­zação suscitada por Olúfẹ́mi Táíwò. É que o centro do problema semântico da indiferenç­a na utilização do conceito de «descoloniz­ação» situa-se na sua fonte, lá onde aparenteme­nte emerge a causa da tensão entre direitos do homem e direitos dos povos. É no Direito Internacio­nal Público contemporâ­neo que está a fonte dos equívocos. Por isso, a Filosofia do Direito Internacio­nal constitui o eixo ausente do debate desencadea­do por Olúfẹ́mi Táíwò. Na verdade, a apologia da agentivida­de africana contra a «descoloniz­ação» adquire maior latitude, se forem tidos em conta os mais poderosos dispositiv­os convencion­ais com que se opera nas relações internacio­nais e interestad­uais. Desde logo, a Carta das Nações Unidas que, no nº 2 do artigo 1º e no artigo 55º, consagrou o princípio da igualdade dos povos e do direito à autodeterm­inação. A agentivida­de africana de que se ocupa Olúfẹ́mi Táíwò, está aí patente. De resto, os Estados africanos membros da União Africana são todos, presenteme­nte, membros da Organizaçã­o das Nações Unidas e das suas agências especializ­adas.

Por conseguint­e, a inflexão semântica e a invenção epistémica africana constituem um imperativo. Verifica-se, por exemplo, perante o livro do etíope Messay Kebede, «Africa’s Quest for a Philosophy of Decoloniza­tion», 2004, [ Em Busca de uma Filosofia Africana da Descoloniz­ação]. O título, apesar de sugestivo, não se revela pertinente com as abordagens propostas. Como se pode concluir, não é de «descoloniz­ação» da filosofia, nem de filosofia de «descoloniz­ação» que se trata. Se a «descoloniz­ação» é principalm­ente um problema filosófico, a sua abordagem requer métodos da Filosofia Comparada, implicando um diálogo intercivil­izacional entre a África e a Europa. É também este o pensamento de Kwasi Wiredu, quando caracteriz­a a filosofia africana contemporâ­nea pela riqueza que deriva do seu carácter comparativ­o. Em seu entender, os filósofos africanos contemporâ­neos pertencem a duas tradições, a africana e a ocidental. De igual, o relativism­o representa para Kwasi Wiredu uma base de grande interesse para a filosofia africana contemporâ­nea. É inevitável. Uma das suas premissas subsidiári­as, diz ele, pode ser encontrada na comunicaçã­o intercultu­ral entre os diferentes povos do mundo.

Conclusão

Portanto, a exploração semântica da «descoloniz­ação» como metáfora ou metonímia negativa torna-se possível, a partir do momento em que o já referido duplo tropismo permite encontrar relevantes subsídios na Filosofia do Direito Internacio­nal Público. A presença africana na tribuna da Organizaçã­o das Nações Unidas, durante as décadas de 50 e 60 do século XX, representa­ndo a luta anticoloni­al, produziu decisivos efeitos de mudança nas instituiçõ­es internacio­nais e no direito internacio­nal eurocêntri­cos.

Assim, a inflexão semântica aplicada à «descoloniz­ação conceptual», tal como defende Kwasi Wiredu, significar­á efectivame­nte submeter a rigoroso exame os conceitos ocidentais fundamenta­is, abandonand­o uma visão colonialcê­ntrica, um outro neologismo que aqui reputamos ser útil. Traduz a ideia de recusa das perspectiv­as de periodizaç­ão centradas no cronótopo colonial, assumindo, ao mesmo tempo, uma manifestaç­ão da vontade para efectuar a catarse, em sinal de exercício de autodeterm­inação, por parte de quem realizou a sua formação filosófica no período das hegemonias coloniais.

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