A paixão pelos mares de Cabo Verde
Nasceu numa família basca de origens nobres. Um antepassado ilustre chegou a combater piratas ingleses nos mares de Cabo Verde, às ordens de Filipe II de Portugal. Mas Alain Hurtebize apenas sonhou com a liberdade dos mares das ilhas: a pesca e a caça submarina, antes de se tornar mergulhador profissional. Hoje, passados quase 40 anos, diz-se cabo-verdiano e não se imagina a viver noutro lugar. Talvez acabar os dias numa casinha no Maio - dois dedos de conversa com amigos, com o mar no horizonte.
Para Alain Hurtebize, Cabo Verde era um mistério que existia apenas na memória da mulher, de origem cabo-verdiana, que conheceu em Toulon, em França. O mar já era a sua grande paixão, pela ideia da liberdade, do espaço, do sonho e da aventura. E depois de sete anos em Paris, para acompanhar a mulher nos seus estudos, já chegava da confusão da capital francesa. Paris não era para ele.
Com o mar e a ideia dessas ilhas misteriosas, vieram o funaná e a cachupa, que lhe entraram em casa, no momento em que a esposa já esperava o seu primeiro filho. Ela ainda tinha parentes na Praia. Pouco tempo depois, estavam em Santiago.
Aqui, Alain descobriu a simplicidade das pessoas, a comunidade de pescadores da Achada Grande e a paixão pela aventura cresceu ainda mais. Recordava as aventuras do herói francês do Mar Vermelho, do início do século XX, Henry de Monfreid, e em pouco tempo já percorria, ele também, águas quentes, ao lado dos homens do mar das ilhas de Santiago, do Maio e da Boa Vista. O casamento não sobreviveu à mudança, às novas vagas desta vida.
Mas Alain ficou. O sonho falava mais alto. O espírito dos mares de Cabo Verde tinha entrado nele. Decidiu então ser caçador submarino. Estava solteiro, sem amarras, liberto para mergulhar. Fazia-o em apneia, sem garrafas de oxigénio. Levava apenas a espingarda, descendo a profundidades por vezes acima dos 30 metros. Na época, a fauna marinha era outra, como recorda: «Os recursos marinhos em Cabo Verde eram abundantes, comercializávamos com as nossas rabidantes e tínhamos uma grande clientela de búzios nos restaurantes da cidade: O Poeta, Luar, etc.».
Integrou-se no grupo de pescadores, homens que também desafiavam o mar, todos os dias. Aprendeu o crioulo e a falar um ‘portunhol’, como costuma dizer. Conheceu nova mulher, criou nova família, mas foi perdendo companheiros de mar, amigos da mesma paixão. «Morreram quase todos», diz. O que o mar dá, também o tira muito depressa. «Há uma taxa de mortalidade muito grande entre os caçadores submarinos e mergulhadores, que as pessoas ignoram, naturalmente.»
Alain explica: «É o tipo de vida que levam, o álcool, alguns as drogas, mas especialmente os acidentes fatais no mar, que por vezes vêm a público nas notícias de televisão, rádio e jornais.»
O novo casamento também não resistiu à paixão marinha. «Esta também revelou-se muito pouco entusiasta das coisas do mar», diz, Alain, sorrindo. Faltava-lhe encontrar uma sereia. Mas, como recorda, a vida corria-lhe como sempre tinha desejado. Nadava também em felicidade, estava todos os dias no seu meio, no seu ambiente. Sobretudo quando vinha á superfície com um peixe de 50 quilos e com a garantia de um bom lucro. Mas também passou a amar a partilha, a solidariedade com os companheiros crioulos, com o respeito e admiração que diz existir entre eles.
«A entreajuda entre os pescadores é muito importante», diz Alain. «Pode-se morrer de uma hora para a outra, o mar não brinca e raramente dá uma segunda oportunidade. Mas 30 anos depois, os teus antigos companheiros ainda te chamam pelo nome, quando te encontram. A fraternidade, o respeito e a consideração não desaparecem.»
Da Moia-Moia, em Santiago, ao Farol Leste da Boa Vista, Alain vivia para o seu sonho. Foi um período de enorme felicidade, como recorda. «A liberdade que existe na vida do pescador ou do caçador submarino é algo único, e que raramente se encontra noutras profissões». Eram pessoas muito especiais, que também o amarraram às ilhas. Muitos deles partiram cedo demais, como explica Alain.
«Nos anos de 1990, fui convidado para trabalhar na Nova Caledónia (Departamento Ultramarino Francês), no Oceano Pacífico.
Tinha um bom salário. Conheci pessoas muito boas e o país é muito bonito. Mas, seis meses depois já estava com vontade de voltar a Cabo Verde, já não aguentava mais estar longe.» O francês recorda o calor humano que lhe faltou noutras paragens mais ricas.
Arqueonautas
Para o final dos anos 1990, começou a notar uma redução acentuada dos recursos marinhos dos mares das ilhas. Por volta do início dos anos 2000, decide aceitar o convite para chefiar uma equipa de mergulhadores profissionais ao serviço da empresa europeia Arqueonautas. Esta tinha chegado a Cabo Verde com um objecitov: buscas submarinas de artefactos, objectos preciosos, provavelmente até tesouros, escondidos em naufrágios de navios históricos, à volta das ilhas. Muita coisa foi falada, na altura. Mas Alain diz saber pouco, até porque os termos do contrato com as autoridades cabo-verdianas, ninguém os coas
nhecia.
«Sei que o representante da sociedade era um aristocrata alemão, que a empresa era sediada em Cascais, em Portugal, que o endereço fiscal era nos Açores… Era uma equipa de umas 30 pessoas, entre técnicos, mergulhadores e outras profissões. Alguns estão hoje no IPC.»
Mas, ao contrário da empresa sul-africana, que operava, na altura, ao largo da Boa Vista, afirma Alain, «alvo de algumas suspeitas quanto à seriedade e idoneidade, nós trabalhávamos com laboratórios e analistas europeus, de universidades, que analisavam tudo o que encontrávamos, seguindo um plano científico.»
O também mergulhador cabo-verdiano, Charles Emanuel d’ Oliveira, “Monaia”, era o fiscal dos trabalhos, das buscas, na época, o supervisor, recorda Alain. «As pessoas têm uma ideia um pouco romântica destas actividades, mas posso dizer que raramente dão lucro, comparando com o investimento que requer, em dinheiro e em tempo.»
Alain defende, ainda, que a sociedade, na verdade, nunca teve lucros em Cabo Verde. Daí terem-se deslocado para os mares na costa de Moçambique, onde ele próprio chegou também a trabalhar nas buscas subaquáticas. Os resultados, diz, «são inferiores às verbas investidas.»
Nos mais ou menos seis anos que as buscas, em navios naufragados em Cabo Verde, duraram, foram recolhidos diversos artefactos, que estiveram armazenados em instalações adaptadas para o efeito, junto do Arquivo Histórico Nacional. «As peças de maior valor e mais procuradas, creio que foram guardadas em cofres, em algumas instituições», diz Alain.
Quanto ao muito falado astrolábio do século XVI, vendido pela leiloeira inglesa Sothebys, em Nova Iorque, «o valor ficou-se pelos 320 mil euros, pagos pelo Museu da Marinha do Estado da Virgínia, nos Estados Unidos.», recorda, muito abaixo do milhão que esperavam arrecadar. «A polémica à volta do instrumento de navegação, na altura, terá resultado da alegada venda, sem a autorização prévia das autoridades cabo-verdianas», assegura Alain.
Terminada a expedição da Arqueonautas, as equipas foram desfeitas e o assunto, dada a sua particular sensibilidade, praticamente foi encerrado, não tendo havido, desde então, o retomar destas buscas em navios no fundo dos mares de Cabo Verde. «A ideia que passou na opinião pública, na época, foi bastante negativa. Era a de que os estrangeiros tinham vindo para enganar os cabo-verdianos e levarem os seus tesouros marinhos para fora, e que o contrato fora bastante lesivo para Cabo Verde.» Depois dos Arqueonautas, chegaram os cabos submarinos da CV Telecom. A pesca aos grandes peixes foi substituída por estes trabalhos especializados, como instalação e reparação. O mesmo como técnico, desta vez ao serviço de instituições como a FAO, em Cabo Verde, mas também em São Tomé e Príncipe e Madagáscar. Assim como junto de organismos nacionais ligados à pesca artesanal, para o controlo dos recursos pelágicos.
Cara a cara com tubarão-tigre
O tubarão é um predador marinho que se encontra por todo o mar de Cabo Verde. Algumas espécies são potencialmente perigosas, como recorda Alain: «Pressentirmos que alguma coisa está atrás de nós, virarmo-nos e darmos de cara com um tubarão-tigre, pode deixar qualquer um paralisado.»
Dessa vez, recorda, o tubarão estava tão perto, que não dava sequer para disparar a espingarda. «Tive de usá-la como arpão, para o afastar. Regra geral, adianta, «não se pode dizer que representa perigo, mas é como um lobo do mar, assusta muito. Mas há poucos casos de acidentes, de ataques, fatais.»
Um dos mais falados envolveu um marinheiro alemão, em Santa Luzia, no início dos anos 2000, que foi atacado por um tubarão-tigre e morreu de hemorragias. «Crê-se que está relacionado com o acto de deitar peixe fora, mas com sangue à mistura, que terá atraído o tubarão…», diz Alain.
Para além dos tubarões, o perigo no mar pode chegar por outras vias, como ficar perdido. «Certa vez, entre a Boa Vista e o Maio, fui caçar e normalmente havia um barco que me transportava e eu vinha à superfície para pôr o peixe na arca congeladora; mas de repente o tempo ficou mau e eu perdi o barco e o marinheiro não me encontrou, fiquei cinco horas perdido, com a noite a chegar, o stress, os tubarões, e aí vi que as coisas podia acabar mal para mim. Mas felizmente, ele encontrou-me, claro, e tudo acabou bem».
Reforma
«A forma de vida que escolhi não dá direito a reforma», explica Alain. O mesmo acontece com os mergulhadores cabo-verdianos. Por isso, a solução é continuar a mergulhar até a saúde deixar, diz o francês de 63 anos. «Chegamos a uma idade em que tudo pode acontecer, ninguém sabe o seu destino, sobretudo quando vivemos tantas aventuras. Não sabemos como tudo vai acabar».
Mas uma coisa é certa, para o mergulhador de Toulon: «Regressar a França está fora dos meus planos. Tenho mais tempo de vida em Cabo Verde do que no meu país de origem. Sou cabo-verdiano, os filhos nasceram aqui, e é aqui que irei viver os últimos dias.»
Para ele, a angústia de enfrentar os últimos dias não deverá ser tão difícil como em França, «onde é muito difícil pagar sequer um pequeno estúdio por 1000 euros». Na verdade, do que gostaria, confessa, «era de morrer no mar.»
Em Cabo Verde pode-se viver com pouco: «uma casinha na ilha do Maio, ir todos os dias ao café conversar com as pessoas do local, também é uma boa maneira de envelhecer…» Mas a casa, para já não é uma necessidade. Os bons