A arte de fazer escolhas
Para Mirri Lobo, o acesso às músicas tornou-se facilitado, os discos já não se vendem como dantes e não há quem promova a música. O mercado e o público já não são os mesmos. Mas os artistas não querem parar.
“Muitas vezes, têm de ser os artistas a avançar”, diz o cantor. E vão avançando, vão fazendo pela vida, a solo ou em dueto. Mas também em trio, em encontros de gerações como esse que Mirri (63 anos) protagonizou na semana passada, no Auditório Nacional, ladeado por Jenifer Solidade (38) e Zul Alves (25). “Estamos a ensaiar, por isso tem sido muito interessante”, assegurou ao A NAÇÃO.
Uma noite em que, com Zul Alves, Mirri procurou a fusão do tradicional com tendências actuais, a partir de composições de grandes nomes da música cabo-verdiana, como Orlando Pantera, Paulino Vieira, Zezé di Nha Reinalda, entre outros; em Jenifer, o desabrochar de musicalidade, a vastidão e a calmaria necessárias à profunda reflexão assente na mudança. A tal esperança num futuro musical melhor.
O Primo do Ildo
Mirri é mais um Lobo, primo directo do Ildo (RIP), o dono da voz aberta e potente. Emílio Rito de Sousa Lobo é o seu nome, também ele cantor e intérprete de morna e coladeira. É o vencedor nº1 do concurso de música “Todo Mundo Canta”, no Sal, no limiar dos anos 80, e que depois viríamos a conhecer no Parque 5 de Julho, na Praia, na finalíssima de 1982, numa das noites tórridas dos concursos então organizados a nível de todo Cabo Verde. Para quem não se lembra, na altura trouxe “Bela” (de Nazário Fortes, do álbum “Alma e Violão” – 1987) para o certame, um verdadeiro hino ao amor, que lhe valeria o segundo galardão nacional dessa noite, aos 22 anos.
Mas Mirri já tinha uma estrada musical, começara bem antes, aos 19 . Muitos anos se passaram, entretanto, mas ele manteve a cumplicidade com a música, sem que isso significasse depender dela.
“Nunca vi a música como meu objectivo principal, para mim sempre foi um hobby, muitas outras coisas foram surgindo como prioritárias na minha vida. Falo do trabalho, da família, das coisas que envolvem muito tempo, e a música começou a ficar à parte. Até porque, à época era impossível viver da música em Cabo Verde. E os grandes mercados da música, a emigração, foi uma coisa que nunca me atraiu”, explicou.
A arte de fazer escolhas
Sim, a vida é feita de escolhas. É o que Mirri Lobo foi fazendo ao longo desses anos todos. Cantou muito, um pouco por todo o lado, no país e na diáspora, mas não gravou muitos discos. De 1979 a esta data, são sete álbuns em produção própria, de alguns dos quais guarda uma história.
Por exemplo, Alma Violão (1987), que transportou a bela faixa “Bela”, um dos maiores sucessos de morna; Matchamor (1988) e Paranoia (1995), este último gravado em parceria com Ramiro Mendes, mas sem que ambos se vingassem, passaram ao largo, “não tiveram muita projeção”.
Em 2010, emerge Caldera Preta (2010), “um disco muito pensado, idealizado, muito acarinhado” por Djim Job. Em 2018, sai o “Ta da Ta da”, tema que viria a valer-lhe o título de Melhor interprete Masculino no Cabo Verde Music Awards de 2019. Na memória também, a música “Encomenda de Terra”. Um sucesso no Sal, em Cabo Verde e na diáspora.
“Esta música foi um fenómeno, foi a última que colocámos no disco. A curiosidade é que gravámos o disco e estava tudo bem concebido, mas faltava uma música de festa, digamos que mais vibrante. E aí apareceu ‘Encomenda de Terra’, que o Paley Spencer nos ofereceu. Notámos logo que, com certeza, viria a ter muito sucesso. E teve. É uma música que fala da tradição do povo crioulo, das pessoas da ilha do Sal. Na ocasião, imaginei que se calhar no Sal viria a ter este sucesso. E no dia em que saiu, estourou em Cabo Verde e na diáspora”.
Importante a notar é que, ainda em 2019, Mirri Lobo lança mais doze inéditos que vêm dar corpo ao repertório do novo disco. A escolha recai sobre composições de jovens autores mescladas com coisas suas. “Salgadim”, o primeiro tema, deu título ao novo trabalho.
Na apresentação pode-se ler: “O álbum é uma homenagem à ilha do Sal e particularmente à localidade de ‘Pedra de Lume’, onde, num domingo, a 22 de Maio de 1960, Mirri Lobo nasceu. Do arranque festivo em ‘Salgadim’ de Kau Brito e Kim Alves, a ‘Stick Out’, composto pelo próprio Mirri Lobo, mergulhando na música-rainha de Cabo Verde, a morna, com ‘Um Sonho So’, de Constantino Cardoso, até à passagem pelo interior de Santiago com o funaná ‘Ta da Ta da’, de Kim Alves, são múltiplas as sonoridades de ‘Salgadim’. Um convite irrecusável para uma deliciosa viagem de 53 minutos pelos diversos recantos rítmicos de Cabo Verde, numa abordagem harmoniosa, moderna e contemporânea sob a direção musical de Kim Alves”.