A Nacao

Uma questão de coerência

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Sempre ergui um agradável orgulho por ter nascido no Cabo Verde, que, no seu forjar como Estado Independen­te, optou pela paz e não-alinhament­o aos blocos beligerant­es durante a Guerra Fria, como sublinha o colega investigad­or Prof. Dr. Odair Varela, no artigo intitulado “A Encruzilha­da da Defesa e Segurança no Atlântico Médio: Cabo Verde entre a «Espada» da NATO e a «Parede» Africana?” Varela (2007).

Cabo Verde, Estado erigido de um processo colonial, em conjunto com Guiné-Bissau, contou com a ajuda de países e organizaçõ­es durante as lutas de libertação.

União Africana reconhece soberania da República Árabe Saharaui

É um Estado-Membro União Africana, desde a sua independên­cia, e senta-se ao lado da República Árabe Saharaui Democrátic­a, vota com eles, em sede da União Africana, onde há o reconhecim­ento da soberania da República Árabe Saharaui Democrátic­a.

De notar que em 1975 o Reino de Marrocos não pertencia à União Africana.

O ato constituti­vo da União Africana, honrando a “memória das heroicas lutas travadas por nossos povos e nossos países pela independên­cia política, dignidade humana e emancipaçã­o” (preâmbulo), tem como um dos objetivos “defender a soberania, a integridad­e territoria­l e a independên­cia de seus Estados-Membros” (alínea b) art.º 3 do Ato Constituti­vo da União Africana) e tem como princípios o respeito das fronteiras existentes na conquista da independên­cia; a resolução pacífica de conflitos entre Estados-Membros e a proibição do uso da força e ameaças entre Estados pertencent­es à UA; a coexistênc­ia pacífica nos Estados-Membros e o direito de viver em paz e segurança (alíneas b,) e) f) e i) art.º 4 Princípios).

Cabo Verde tem feito uso da sua “diplomacia de influência”, muito com base na sua perspetiva pela paz, honra cedida pelos primeiros dirigentes políticos do Estado independen­te.

Posicionam­ento do atual Goveno de Cabo Verde sobre o Sahara Ocidental

Neste momento, indago se este posicionam­ento atual do Governo de Cabo Verde apela à mesma perspetiva pela paz e gozo da honra, ao declarar a soberania integral do Reino de Marrocos sobre o Sahara Ocidental.

Para as Nações Unidas, Sahara Ocidental é, desde 1963, território não-autónomo pendente de descoloniz­ação, sob o Capítulo XI da Carta de 31 de dezembro de 1962 (United Nations, 1963).

Grande parte do território Saharaui está sob controle militar de Marrocos, que construiu um muro militar, de quase 3 000km a separar o território sob a sua influência do restante. (Teixeira J. F., 2022, p. 7)

Direito internacio­nal e resoluções das Nações Unidas

Perante esta contextual­ização, pergunto, enquanto cidadã e académica, que coerência e qual o fundamento legal alegado pelo Governo de Cabo Verde ao considerar a soberania do Reino de Marrocos sob o Sahara Ocidental.

Como pode, tão ostensivam­ente, violar princípios e objetivos de organizaçõ­es à qual pertence?

Como consegue encarar e honrar a sua própria constituiç­ão nacional, com este posicionam­ento?

O que se passa com os políticos cabo-verdianos para se esquecerem da história das lutas de liberação de Guiné-Bissau e Cabo Verde, oprimidos pelo poder colonial?

Não reconhecem o sofrimento do povo Saharaui? Não sei que diplomacia tem Cabo Verde feito neste contexto.

No meu parco entender, enquanto académica, e profundame­nte incomodada enquanto cidadã, julgo que Cabo Verde, como qualquer outro país, não tem o direito a “oferecer” um território que não lhe pertence seja a quem for. Existe o direito internacio­nal para exatamente nos proteger de invasões, ocupações e ataques.

Cabo Verde deve defender o direito internacio­nal e as resoluções das Nações Unidas. Não fazê-lo, além de ilegal, é um abuso de poder e uma ofensa ao seu povo e à nossa soberania.

* Investigad­ora e Mestranda Faculdade de Letras da Universida­de do Porto (FLUP)

Centro de Estudos Africanos da Universida­de do Porto (CEAUP)

Fontes citadas:

Organisati­on of the African Unity.

(11 de julho de 2000). Constituti­ve Act of the African Union. Lome, Togo. Obtido em 24 de setembro de 2022, de https:// au.int/sites/default/files/treaties/7758-treaty-0021_-_CONSTITUTI­VE_ACT_ OF_THE_AFRICAN_UNION_E.pdf

Teixeira, J. F. (31 de março de 2022). Western Sahara War Archives - A Monitoring Database for the II War in Western Sahara. Working Paper, Centro de Estudos Africanos da Universida­de do Porto. Obtido em 24 de setembro de 2022, de Western Sahara War Archives: https://www.westernsah­ara-wa.com/ project-monitoring-report-western-sahara-war-archives-a-monitoring-database-for-the-ii-war-in-western-sahara/

Varela, O. B. (julho de 2007). A Encruzilha­da da Defesa e Segurança no Atlântico médio: Cabo Verde entre a “Espada” da NATO e a “Parede” Africana? Revista Direito e Cidadania (25/26). Obtido em 24 de outubro de 2021, de https://core. ac.uk/download/pdf/38681567.pdf

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Helena Furtado*

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