Uma ilha na Literatura-Mundo
A festa da literatura regressa ao Sal, nesta segunda edição pós-pandemia, reunindo mais de trinta convidados, entre escritores, editores, tradutores, jornalistas, nacionais e estrangeiros. Juntos irão abordar a magia que ainda existe nas histórias, numa roda que se quer cada vez mais alargada ao mundo e para o mundo.
OFestival de Literatura-Mundo do Sal (FLM-Sal), que começa esta quinta-feira, 8, indo até ao próximo domingo, 11, não estava destinado a realizar-se aqui, na ilha mais turística do país. Sete anos e cinco edições depois (descontando dois anos de pandemia da Covid 19 e contando com esta edição, ainda a decorrer), é o poeta Filinto Elísio (da Editora Rosa de Porcelana, organizadores), um dos mentores e em jeito de balanço, que revela que o desvio do local, inicialmente previsto para a primeira realização, teve a mão do próprio presidente da Câmara do Sal, Júlio Lopes.
«Tínhamos pensado fazê-lo em Portugal, onde na altura não havia e nem há ainda hoje, um Festival literário com estas características. Estávamos de passagem pelo Sal, quando comentámos sobre isso e o presidente da Câmara local – pessoa também muito ligada aos livros e à literatura, como se sabe - prontamente disse que não, que esse era um festival para se realizar na ilha do Sal», lembra Filinto.
O autarca viu a importância do Sal e de Cabo Verde como país-ponte, a meio caminho entre os continentes, para conectar escritores, críticos e pensadores da literatura. E nas cinco edições, eles foram chegando: do Brasil, Angola, Nigéria, Tailândia, Vietname, Estados Unidos, para além de Portugal, Espanha, Alemanha, entre vários outros países europeus.
Do Sal para o mundo
O Sal tem esta vantagem. Depois de servir de escala para voos transcontinentais, a partir do final dos anos 30 do século passado, a conexão pretende-se agora no mundo das letras. Juntar escritores e falar de literatura, também pode levar a falar do Sal em outras paragens. É isso que a organização pretende e essa tem sido a estratégia que levou a associar o nome do
Festival a parceiros estratégicos ligados ao turismo, como o ministério do Turismo e Transportes, para além da Câmara local. E desta última, revela o organizador, vem o único financiamento em dinheiro vivo, votado e aprovado em assembleia municipal, desde 2017, no valor de mil contos.
«O resto são as dormidas e a alimentação, sempre fundamentais, para os convidados em cada edição, disponibilizados pelos hotéis, que também acreditaram no projecto, desde a primeira edição.»
Este ano, o FLM-Sal promove a primeira edição do Prémio Llana de Literatura, no valor de 1200 contos, patrocinados pelo Ministério do Turismo e Transportes. Quanto ao Ministério da Cultura e Indústrias Criativas, até agora, só silêncio. Não chegou apoio algum, adianta Filinto, «inclusive endereçámos convite ao senhor Ministro logo na primeira edição, em 2017, para estar presente.» Sem resposta também.
Alargar o Cânone Ocidental
Passando aos objectivos concretos do FLM-Sal, tudo partiu do repto mundial lançado pela Universidade de Harvard, há alguns anos, para se estudar a literatura mundo, fazer-se a análise de textos, procurando alargar o chamado Cânone Ocidental, que também dá título ao livro do crítico literário americano, Harold Bloom, que primeiro estabeleceu esse conceito e iniciou a discussão.
Simplificando, o cânone não é mais do que um conjunto de obras literárias consideradas basilares, fundamentais, incontornáveis, na literatura mundial, elencados por Bloom. Naturalmente, com incidência na literatura ocidental, euro-cêntrica, como indica o título, sobretudo anglo-saxónica. Mas também constam nele obras de outros países europeus, como França, Alemanha, Espanha, Rússia, Portugal (Pessoa, Camões e Eça de Queirós), entre outros.
«É um ‘Olimpo’ literário muito apertado, muito redutor», diz Filinto Elísio, para quem um dos principais objectivos do Festival do Sal é «alargar a visão anglo-saxónica desse conceito, aumentar os campos literários, em termos críticos, trazer novos métodos comparatistas, introduzindo os contos, a literatura oral africana, onde também há histórias na linha de A Odisseia; trazer sistemas culturais de outras geografias e alargar o tal cânone.»
Mas a literatura mundo, aquilo que na pequena ilha do Sal se discute, não significa criar uma ‘tribo, fechada, em oposição às literaturas tradicionais’, vai avisando. «Pelo contrário, é alargar o cânone, num desafio lançado a todas as universidades e instituições que se ocupam da literatura, chamados a perceber esta metodologia, e que já utilizam esta ideia de literatura mundo como método de análise literária, de uma forma mais abrangente.»
E tudo isto acontece num encontro que junta escritores, naturalmente, mas também professores, editores, tradutores e outros elementos desta ‘cadeia cultural’, como lhe chama Filinto, que discutem ideias e caminhos que daqui surjam, e que levem a literatura para outros espaços.
A primeira edição arrancou em 2017, tendo à cabeça Filinto Elísio, Márcia Souto, o escritor português José Luís Peixoto e Patrícia Pinto. E em todas as edições, o modelo seguido é o da homenagem a um escritor cabo-verdiano e a outro do resto do mundo, se quisermos.
Os primeiros desta dupla foram o poeta Corsino Fortes e José Saramago, 2017 (Portugal), seguindo-se Mário Fonseca e Jorge Luís Borges (Argentina), 2018, Orlanda Amarílis e Goethe (Alemanha), 2019, João Vário e Amadou Hampaté Ba (Mali), 2022, e este ano Dulce Almada Duarte e António Tabucchi (Itália), 2023.
Outra das variantes deste Festival são as extensões, como explica Márcia Souto. Através delas, o FLM-Sal pôde estar presente em vários locais, ao longo das edições. «Inaugurámos essa ideia em 2018, com a extensão a Ouro Preto, em Minas Gerais, no Brasil, no Fórum das Letras, com a professora Guiomar de Grammont, e continuámos com o Festival de Óbidos, com a Casa Fernando Pessoa, com a Universidade de Cabo Verde, com universidades de Roma, Florença e Milão, de Itália.»
Momento de viragem
Para os organizadores, esta quinta edição do FLM-Sal será o momento de viragem, «pelas relações criadas, pelos parceiros novos, pela maior aposta na parte científica, pela interdisciplinaridade que queremos passar a introduzir com mais força», explica Filinto. A ideia é a de que daqui para a frente o Festival ganhe cada vez mais essa transversalidade.
«Este ano vamos ter o historiador António Correia e Silva, porque a literatura também tem a História no seu seio, e vice versa, e é preciso dar-lhe essa contextualidade; é como a antropologia, a medicina, os autores que também exerceram essa profissão, que lidam com situações limite; nesse contexto queremos envolver mais universidades, avançar nessa componente académica e científica, sem desprimor para os escritores, naturalmente.» E essa componente contará, nesta edição, com a curadoria científica da professora de literatura Inocência Mata (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) para além dos elogios às duas figuras homenageadas, a linguista cabo-verdiana Dulce
Almada Duarte, e o escritor e professor de literatura italiano, António Tabucchi.
«O Festival privilegia a língua e a identidade, não está em contradição com as literaturas ditas tradicionais; e sendo literatura do mundo, abarca literaturas não ‘consagradas’ mundialmente.»
Outra das variantes, digamos, de expansão local, iniciadas em edições anteriores, adianta, são as visitas de escritores às escolas do Sal (Complexo Educativo Manoel António Martins, Colégio Letrinhas e Escola Básica Secundária Olavo Moniz), conversas com alunos, bem como a participação de professores locais, nos painéis de discussão, para além de escritores também locais.
«Alunos das escolas irão, também, fazer um trabalho sobre os escritores homenageados. E contamos, igualmente, com a população do sal, que já nos habituou à sua presença, de forma a não ficarmos numa redoma de escritores e pensadores só de fora.»
E à semelhança de Oswaldo Osório, em 2019, adianta Filinto, «haverá um tributo ao escritor e ex-Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, organizado pela Câmara Municipal do Sal, ele que desde a primeira edição ajudou a consolidar o Festival, através do apoio institucional da Presidência.»
Um dos momentos mais esperados, será o anúncio do(a) vencedor(a) da primeira edição do Prémio de Literatura Llana, dia 11, domingo, no encerramento do Festival, no valor de 1200 contos, actualmente o maior em termos pecuniários, no país.
São cerca de catorze escritores e professores cabo-verdianos e dezassete de outras nacionalidades que estarão no Sal, para esta quinta edição do FLM-Sal, representando sete países (Alemanha, Angola, Brasil, Itália, Portugal e São Tomé e Príncipe).
Os trabalhos e os dias do FLM-Sal
Os trabalhos, que decorrem no auditório do Hotel Belorizonte e com sessões de leitura nas Salinas
de Pedra de Lume, contam ainda com editores e tradutores, como já é hábito.
A abertura conta com a presença do Presidente da República, José Maria Neves, e estão também previstas sessões de elogio aos escritores homenageados pelas vozes de Adelaide Monteiro, Amália Lopes e Filinto Elísio homenageados (Dulce Almada Duarte), e Clara Silva Luca Fazzini, Marco Piazza e Roberto Francavilla (António Tabucchi).
Quanto aos temas em debate, para os ‘Momentos Científicos’, estão previstas mesas que abordarão aspectos como Língua e Identidade I; Língua e Identidade II e Aprendizagem de uma Língua no Encontro com o Outro.
Temas como Língua/Identidade – Literatura Nacional e Literatura-Mundo; Edição e Circulação e Identidade e Projecção de Alteridades, serão debatidos por escritores, professores, investigadores, editores e tradutores convidados.