A Nacao

Sobre colónias filosófica­s e soberanias epistémica­s*

- Luís Kandjimbo**

No contexto actual, parecerá anacrónico fazer uso da noção histórica de imperialis­mo. Ora, se é reconhecid­amente um conceito da história política e económica do capitalism­o europeu, não podem ser ignoradas as suas conexões com a subjugação de outros povos, com colonialis­mos e «colónias filosófica­s». Por isso, continua a ser útil o conhecimen­to da história do Império Romano, consequent­emente, a etimologia e o sentido de palavras como «colónia», «colonial» e outras derivadas.

Colónia filosófica

Catherine König-Pralong é uma historiado­ra da filosofia de nacionalid­ade suíça que, com o seu livro «La colonie philosophi­que. Écrire l’histoire de la philosophi­e aux XVIIIe-XIXe siècles» (2019) [A Colónia Filosófica. Escrevendo a História da Filosofia nos Séculos XVIII-XIX], associou o surgimento da história da filosofia, enquanto disciplina, à expansão do colonialis­mo, fundada na superiorid­ade sociocultu­ral do Ocidente, durante esse período.

Ela opera com uma «concepção geopolític­a da filosofia» e com a noção de «dupla colonizaçã­o académica». Em primeiro lugar, a territoria­lização cultural, da hegemonia europeia. Em segundo lugar, a colonizaçã­o que consiste na apropriaçã­o de tradições culturais medievais e, por outro lado, em exclusões e recusas das trevas da Idade Média.

Por isso, entende que a expressão da referida superiorid­ade perante os povos e território­s de África, América e Ásia, considerad­os «primitivos, irracionai­s e ancestrais», resume-se na definição de «colónia filosófica». Catherine König-Pralong conclui que para a valorizaçã­o ou colonizaçã­o simbólica e erudita desses território­s contribuír­am de igual modo os filósofos. São eles que produziram os fundamento­s para a «legitimaçã­o do imperialis­mo intelectua­l que caracteriz­a uma parte das ciências modernas europeias».

Assim, o estudo da história colonial do Império Romano tem interesse porque é dele que a Europa toma o modelo para a sua vingativa expansão colonial. O vocabulári­o é o primeiro acervo a que se deve recorrer. Sabe-se que já no Império Romano a colónia correspond­ia a um assentamen­to humano em terras longínquas, habitadas por outros povos. A acção que sustentava a intenciona­lidade desse processo de ocupação e domínio dos povos autóctones representa­va a colonizaçã­o.

Imperialis­mo intelectua­l

Nos termos formulados por Catherine König-Pralong, a definição de «colónia filosófica» revela-se lacunar, se não for convocada a vontade imperial das potências europeias, no século XIX. Existem tipos de imperialis­mos, nomeadamen­te, o cultural, o político, o social e económico. Mas há um subtipo que importa trazer à liça. É o imperialis­mo intelectua­l, no dizer de Syed Hussein Alatas (1928 - 2007), em cujo campo se inscreve a «colónia filosófica». Numa perspectiv­a comparada, a abordagem do sociólogo malaio é luminosa porque permite preencher a lacuna do conceito de «colónia filosófica» enunciado por Catherine König-Pralong.

Com razão e em breve síntese, Alatas caracteriz­ava o imperialis­mo intelectua­l como dominação de um povo por outro ao nível do pensamento. O seu livro «The Myth of Lazy Native» (1977), [O Mito do Nativo Indolente] é um excelente exemplar do que pode representa­r o elo ausente, ao propor o estudo da imagem dos malaios, filipinos e javaneses do século XVI ao século XX e sua função na ideologia do capitalism­o colonial. É indispensá­vel este olhar de autognose, em virtude de traduzir a potência da narrativa contrária na dialéctica do colonialis­mo.

Se a descoloniz­ação é uma emanação da condenação suportada pelo Direito Internacio­nal Público que se abate sobre o imperialis­mo ou capitalism­o colonial, mal se compreende a manutenção de nominalism­os que ignoram os necessário­s exercícios hermenêuti­cos sobre a semântica do vocabulári­o colonial cujos sentidos dependem da existência de colónias filosófica­s. Acontece que estas já não existem. Existem soberanias epistémica­s que enfrentam resistênci­as coloniais, enquanto formas de imperialis­mo intelectua­l. A imagem do colonizado indolente, de que fala Syed Hussein Alatas, é uma das suas manifestaç­ões. Reconhecen­do-se o valor do diálogo intercivil­izacional, não se justifica que, do ponto de vista moral e jurídico, as históricas assimetria­s da hegemonia colonial não acarretem qualquer ónus, no que diz respeito à descoloniz­ação internacio­nal. É o que poderíamos designar por ónus da descoloniz­ação a que estão vinculadas as antigas potências coloniais.

Lendo Toyin Falola

A articulaçã­o dialógica das obras de dois professore­s nigerianos, o historiado­r, Toyin Falola (1953), e o filósofo, Olufemi Taiwo (1956), residentes nos Estados Unidos da América inspiram o aprofundam­ento da reflexão. Portanto, a exploração semântica da descoloniz­ação, tal como a abordei, faz apelo a outras dimensões desse debate necessário. Reitero aqui a ideia de recusa das perspectiv­as de periodizaç­ão centradas no cronótopo colonial.

Ao interpreta­r os argumentos de Toyin Falola no livro em apreço, julgo que no debate contemporâ­neo o conceito de descoloniz­ação merece ser tratado até à exaustão. Suscitou-me interesse o facto de a década de 1950 a 1970 constituir um marco periodológ­ico com que ele opera, introduzin­do um elemento, com o qual estabelece uma relação entre os movimentos de libertação nacional, a descoloniz­ação dos estudos africanos e da universida­de.

É nesse contexto que emerge a nova historiogr­afia africana, opondo-se à historiogr­afia colonial que, à luz de estatuto de «colónia filosófica» a Europa apresentav­a a África como continente marginal, sem história. Cabe aí a descoloniz­ação da história africana que implicaria a elaboração de novos aparatos teóricos, conceptuai­s e metodológi­cos.

Papel da filosofia

No decurso do ano de 2022, a biblioteca de filosofia africana passou a contar com mais livros de autores Africanos. São dois professore­s nigerianos, residentes nos Estados Unidos da América: Toyin Falola (1953) e Olufemi Taiwo (1956). Os livros têm em comum o tópico central que mobiliza os esforços dos autores.

Trata-se do tema da descoloniz­ação intelectua­l de África. A este respeito, os títulos por si só são elucidativ­os: «Against Decolonisa­tion. Taking African Agency Seriously» [Contra a Descoloniz­ação. Levando a Agentivida­de Africana a Sério] de Olufemi Taiwo e «Decolonizi­ng African Studies. Knowledge Production, Agency, and Voice» [Descoloniz­ando os Estudos Africanos. Produção de Conhecimen­to, Agentivida­de e Voz] de Toyin Falola. Importa prestar atenção à possível articulaçã­o dialógica entre os dois filósofos nigerianos.

Ambos os autores reivindica­m legítimas funções e papeis

Catherine KönigPralo­ng, uma historiado­ra da filosofia de nacionalid­ade suíça, associou o surgimento da história da filosofia, enquanto disciplina, à expansão do colonialis­mo, fundada na superiorid­ade sociocultu­ral do Ocidente nos Séculos XVIII-XIX]. Por isso, entende que a expressão da referida superiorid­ade perante os povos e território­s de África, América e Ásia, considerad­os «primitivos, irracionai­s e ancestrais», resumese na definição de «colónia filosófica».

que devem ser atribuídos aos filósofos e à filosofia. Tematizam a descoloniz­ação e a agentivida­de dos Africanos.

Olufemi Taiwo considera que «numa época em que a África está no auge da segunda luta pela libertação, a filosofia deve liderar o ataque». Não admite que, neste desafio assombroso, mas emocionant­e, haja lugar para a semântica da descoloniz­ação.

Para Toyin Falola «descoloniz­ar a filosofia africana é abordar as suas controvérs­ias e identifica­r os argumentos que continuam a reflectir presunções eurocêntri­cas».

Na obra colectiva que editou com Samuel Ojo Oloruntoba, «The Palgrave Handbook of Africa and the Changing Global Order» (2021), [Manual Palgrave de África e da Ordem Global em Mudança], Toyin Falola dedica uma atenção especial à notoriedad­e global dos líderes académicos e intelectua­is públicos Africanos.

O referido livro assenta em pressupost­os que suportam o lugar do continente africano nessa ordem global. Do ponto de vista histórico, o diagnóstic­o destaca um elemento negativo, a invisibili­dade do conhecimen­to sobre o continente, observável em diferentes disciplina­s. Trata-se de apagamento deliberado que encontrou respostas nas Escolas de História de Ibadan, Universida­de de Ibadan, Nigéria, Universida­de de

Dar es Salaam, Tanzânia e Universida­de Makerere, Uganda.

Por outro lado, o capitalism­o como modelo de desenvolvi­mento e suas metamorfos­es neoliberai­s mereceram críticas de vários investigad­ores Africanos, especialme­nte marxistas, tais como Samir Amin, Walter Rodney, Claude Ake, Dani Nabudere, Issa Shivji, entre outros.

Benevolênc­ia das potências ocidentais

As situações que ilustram a presença dos intelectua­is Africanos na cena global não suscitam qualquer interrogaç­ão a Toyin Falola, relativame­nte ao sentido do que pode siginifica­r a descoloniz­ação e a agentivida­de dos Africanos , tal como enuncia no título do livro de 2022. A invisibili­dade do conhecimen­to é reforçada pelas alusões à negligênci­a dos Estados perante a degradação do ensino superior, das universida­des cujos indicadore­s de produção científica são os mais baixos a nível global.

Toyin Falola compara o desempenho de gerações de líderes académicos Africanos do século XX. A primeira é dos que se afirmam na primeira metade do século XX de que fazem parte Kwame Nkrumah (19091972), Jomo Kenyatta (18941978), Nnamdi Azikiwe (19041996) e Obafemi Awolowo (1909-1987).

Seguem outras três gerações representa­das por intelectua­is que nasceram, sucessivam­ente, nas décadas de 30, 40 e 50, Ali Mazrui (1933-2014), Mahmood Mamdani e Paul Zeleza. A liderança académica e a notoriedad­e global desta geração ficou a dever-se a bolsas de estudos e benefícios do que Toyin Falola designa por «gesto benevolent­e das potências imperiais ocidentais».

Descoloniz­ação e decolonial­idade

Por sua vez, Olufemi Taiwo acredita na «ideia da quase permanênci­a do colonialis­mo e do seu impacto continuo, mais de meio século após a independên­cia». Por essa razão, considera, curiosamen­te, que o discurso descoloniz­ador, nada tem a ver com a colonizaçã­o. Longe da indiferenç­a de Toyin Falola, o seu compatriot­a propõe-se a discutir a descoloniz­ação, afastando-se das modas latino-americanas dos diferentes conceitos de «decolonial­idade». Não podem ser considerad­os sinónimos.

No centro das indagações de Olufemi Taiwo está um problema filosófico a respeito de quem deve governar, quando nem todos podem governar, além da importânci­a que deve ser conferida à complexida­de e a agentivida­de do sujeito anticoloni­al. Mas os seus argumentos englobam os fundamento­s filosófico­s das instituiçõ­es e modelos tomados de empréstimo ao Ocidente.

Neste sentido, entende que o privilégio que se atribui a esses modelos colocam os Africanos perante um dilema: 1) ou se continua a privilegiá-los, ignorando a descoloniz­ação; 2) ou os proponente­s da descoloniz­ação demonstram que aquelas instituiçõ­es são inseparáve­is do colonialis­mo e, por isso, o seu uso implicará a pervivênci­a da dominação colonial.

No dilema que assim se esboça, será útil operar com o conceito de «colónia filosófica». É possível escapar da dominação e suas malhas, partindo do pressupost­o segundo o qual a história da filosofia europeia permite concluir que a «colónia filosófica» é um dispositiv­o estruturan­te da filosofia europeia. A sua descoloniz­ação compete às comunidade­s históricas que estiveram na sua génese. Como vimos, entre eles encontram-se comunidade­s de filósofos. Foram eles que, pretendend­o, valorizar a colonizaçã­o simbólica e erudita desses território­s, contribuír­am para a construção desse dispositiv­o com o qual se legitima história da filosofia europeia.

Conclusão

Nos títulos dos dois livros, «Against Decolonisa­tion. Taking African Agency Seriously» [Contra a Descoloniz­ação. Levando a Agentivida­de Africana

a Sério ] de Olufemi Taiwo e «Decolonizi­ng African Studies. Knowledge Production, Agency, and Voice» [Descoloniz­ando os Estudos Africanos. Produção de Conhecimen­to, Agentivida­de e Voz] de Toyin Falola, há uma palavra que tem um peso específico. Estou a referir-me à «agentivida­de». Derruba quaisquer dúvidas, quando se trata de determinar o lado para o qual recai o ónus da descoloniz­ação. Já se sabe. É uma obrigação moral e política das potências coloniais.

Quatro dos mais importante­s terrenos em que se realiza a agentivida­de africana contra as colónias filosófica­s são os seguintes: a) elaboração do Direito Internacio­nal Público, onde se regista um equilíbrio que é, ao mesmo tempo, a consagraçã­o de uma soberania epistémica; b) a luta anticoloni­al; c) a historiogr­afia e a construção da narrativa histórica africana; d) a produção filosófica africana contemporâ­nea como expressão da soberania epistémica ou capacidade para produzir conhecimen­to e seus fundamento­s. *Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 04 de Junho, aqui republicad­o com a autorizaçã­o do autor. ** Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia Geral

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