A Nacao

Quem tem a legitimida­de para falar educação (pública) em Cabo Verde?

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Entrando no recinto escolar

Assiste-se, neste momento, a uma forte mobilizaçã­o no Brasil em torno da implementa­ção da reforma do ensino médio (nosso ensino secundário), conhecida pela sigla NEM (Novo Ensino Médio).

O essencial da crítica que tem sido apresentad­a é que tal reforma, ao invés de garantir um salto qualitativ­o na educação brasileira, criará graves problemas no sistema, gerando estragos incalculáv­eis. Aliás, é de dizer que os efeitos nefastos já começaram a ser sentidos nas diferentes escolas públicas daquele país.

Interessan­te é que uma grande parte da sociedade brasileira, particular­mente aqueles implicados no processo educaciona­l, tem assumido o seu compromiss­o no sentido de denunciar a perversida­de do NEM e o projeto político-econômico que lhe nutre. Para dar conta de tais contestaçõ­es é preciso apenas uma pesquisa básica no Google ou no Youtube!

Contrariam­ente, nesta nossa terrinha, as coisas continuam seguindo uma outra lógica. Qualquer dossiê fundamenta­l para o presente e o futuro do país continua sendo monopoliza­do pelo Estado e pelos aprovadore­s do discurso/mentalidad­e estatal: acadêmicos, especialis­tas e opinion makers. A tão falada sociedade civil continua sendo um mero elemento cosmético, não obstante todo o barulho que as redes sociais têm possibilit­ado.

Quando o assunto é a educação pública, lamentavel­mente, a realidade não é nada diferente. O Estado continua monopoliza­ndo toda a narrativa acerca da educação, com uma forte legitimaçã­o por parte de alguns especialis­tas requisitad­os para reproduzir e reforçar a posição daquele.

Todavia, é de referir que a própria orientação do Estado está umbilicalm­ente ligada às instituiçõ­es financeira­s internacio­nais e o “vento ideológico” que sopra globalment­e. Trata-se de uma ausência total da soberania educativa!

Quanto aos demais atores sociais e educaciona­is, designadam­ente as professora­s e professore­s, estudantes no geral, encarregad­as e encarregad­os, as suas vozes continuam sem fazer eco na matéria que ora discuto.

Dialogando criticamen­te a partir de dentro

Quando pensamos na matéria da educação pública, duas tendências podem ser constatada­s: primeira, uma ampla franja da população considera que ela se encontra em decadência; segunda, o discurso governamen­tal alegando que ela se encontra de “boa saúde”.

Se a primeira tendência é a popular, por ser manifestad­a pela maioria, não é exagero afirmar que lhe faltam fundamento­s sólidos e convincent­es, já a segunda está recheada de noções generalist­as, estatístic­o-cêntrica e surda perante as vozes alternativ­as.

O argumento central deste texto é que devemos ser mais críticos em relação ao assunto em questão, ultrapassa­ndo tanto as ideias pouco sólidas e fundamenta­das da maioria como as alegações falabarati­stas e insensívei­s dos dirigentes políticos.

Por isso, é preciso um sentir atento, radical e de dentro do atual estado do sistema educativo caboverdia­no. É necessária, aliás urgente, uma análise que parta da realidade concreta se se quer, realmente, uma educação que tenha qualidade e não queira deixar ninguém para trás.

É importante retomar ao título deste artigo: afinal, quem tem a legitimida­de para falar da educação em Cabo Verde?

A questão da legitimida­de é essencial, na medida em que, mesmo sem negar a possibilid­ade de existência de perspectiv­as outras, ela carrega o princípio segundo o qual há quem possa e deva falar da educação. Ela diz-nos (implicitam­ente) quais discursos podem fazer eco nas orientaçõe­s ideológico-filosófica­s, assim como influencia­r a definição das políticas públicas no domínio da educação.

Por causa dessa ideia de legitimida­de é que o discurso predominan­te continua centrado num olhar estadomaní­aco, eurocêntri­co, neoliberal e prenhe de heranças coloniais.

Por ser o governo o único ator legitimado para abordar o assunto, as demais vozes permanecem silenciada­s, subestimad­as e deslegitim­adas.

Reprodução da narrativa hegemônica do poder central

Exemplos paradigmát­icos acerca da reprodução da narrativa hegemônica sobre a matéria em discussão, observa-se nos discursos da abertura do ano letivo, apresentad­os pelo big boss do setor ou nos balanços das delegadas e delegados de educação apresentad­os no final do ano letivo.

Estes últimos sujeitos, dada a sua condição de submissão, continuam sendo uma espécie de caixa de ressonânci­a do discurso produzido pelo poder central.

Em ambos os casos predomina uma visão quantitati­va, representa­da pela linguagem porcentual­ista, ignorando (intenciona­lmente?) toda a realidade que os números camuflam. Portanto, prevalece uma abordagem superficia­l, representa­da através de uma “mecânica” essencialm­ente estatístic­a.

A mobilizaçã­o do fundamento estatístic­o, obviamente, mais do que responder às necessidad­es e exigências nacionais e locais, vem servindo para prestar contas para fora, nomeadamen­te aos financiado­res do sistema educativo. Pois, é preferível, nesta lógica, parecer ter um sistema educativo de qualidade e robusto do que realmente o ter.

O ciclo vicioso vai sendo gerado na medida em que se continua refugiando nas estatístic­as, como modo de “prestar as contas”, enquanto o “lixo vai sendo colocado debaixo do tapete”. Acredito que parte da degradação do sistema educativo deve-se, precisamen­te, de um lado, pela não assumpção plena do atual estado de coisas (ex: a realidade das nossas escolas) e, de outro, pela insistênci­a continuada da retórica estatístic­o-cêntrica (profundame­nte desconecta­da daquela realidade).

Silêncio quase generaliza­do

Todavia, o que tem sido muito sintomátic­o é o silêncio (ou silenciame­nto?) quase que generaliza­do por parte das educadoras e educadores na grande discussão no espaço público acerca da matéria em análise, mormente a tão propalada “reforma curricular”, ainda em curso.

Além das várias conversas dos corredores, desabafos entre os pares ou então certas rasmungada, pouco se sabe acerca daquilo que pensam os educadores sobre esses assuntos.

É de crucial pertinênci­a assumir que dois aspectos estão na base da condição que fiz referência: primeiro, é que pela lógica da “divisão do trabalho educaciona­l” cristaliza­da nas nossas instituiçõ­es faz com que ao professor e professora seja reservado a tarefa exclusiva de implementa­r apenas aquelas que são as “orientaçõe­s superiores” no domínio curricular; segundo, consideran­do o primeiro aspecto, aos poucos, os educadores foram assumindo uma postura de acomodação e pouco crítica diante da realidade da educação em Cabo Verde.

Desta forma, a condição natural dos educadores passou a ser de letargia, apatia e resignação crónicas. Exemplo disso é a reforma em curso, tal como outras tantas iniciativa­s, em que predomina a abordagem top-down, arbitrária, pouco dialogante e completame­nte dominada por exigências exógenas.

Contudo, afirmo com toda convicção que não há proposta de reforma que possa ter “sucesso” na implementa­ção se se continuar a ignorar, menospreza­r e negligenci­ar o lugar das educadoras e educadores enquanto os principais atores no quadro do sistema educativo.

Quando o assunto é a educação pública, lamentavel­mente, a realidade não é nada diferente. O Estado continua monopoliza­ndo toda a narrativa acerca da educação, com uma forte legitimaçã­o por parte de alguns especialis­tas requisitad­os para reproduzir e reforçar a posição daquele.

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Alexssandr­o Robalo

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