A Nacao

Cabo Verde é o meu ‘Karma’

- Joaquim Arena

Depois de conhecer Cabo Verde, na sua juventude, tudo mudou para o italiano Roberto Francavill­a. Os momentos mais importante­s da sua vida ficariam ligados para sempre às ilhas e à sua cultura. Hoje, regressa como professor de literatura, numa viagem comovente pelos caminhos da memória, de um Cabo Verde puro e de amizade.

Amemória mais nítida da passagem do italiano Roberto Francavill­a, pela vila de Santa Maria, na ilha do Sal, nos anos oitenta, são os bandos de cães selvagens, como conta. «Praticamen­te tudo mudou, onde é hoje a Rua Pedonal, era uma rua triste, coberta de terra, onde nada acontecia. Lembro-me de que havia um boteco na esquina e dos grupos de homens que se juntavam à noite, enquanto havia luz, para tocarem mornas, com violões, violino e cavaquinho­s.» Agora, o que se vê é uma cidade turística, com muita luz, esplanadas, muita vida e movimento. «Mas os bandos de cães continuam a ladrar à noite e a passear livremente pela cidade.»

Cooperante­s italianos na Assomada

Francavill­a, 57 anos, é professor e tradutor de literatura portuguesa, brasileira e africana de língua portuguesa, na universida­de de Génova. E a sua ligação às ilhas de Cabo Verde vem de um «tempo de inocência», como gosta de recordar.

Corria o ano de 1984, ainda a independên­cia sem completar dez anos, quando, durante um Verão, com 18 anos, visitou os pais acabados de se instalar na vila da Assomada, em Santiago. Franco Ferrando e Rossana, tal como outros italianos, vieram ao abrigo do programa de cooperação entre Itália e Cabo Verde. E nada seria igual na vida de Roberto Francavill­a, como revela.

«Na época, Cabo Verde não existia para nós, em Itália, e mesmo Portugal era desconheci­do, não se falava nada sobre esses países. E mal cheguei descobri a língua portuguesa e o crioulo. Foi uma grande revelação, tudo era diferente: tínhamos um macaquinho no quintal da casa, o meu pai tinha um garrafão de grogue de Santo Antão para os amigos que nos visitavam, o tempo era diferente, como que suspenso, fiz muitas amizades, são momentos que mudam tudo na vida de uma pessoa.»

Cabo Verde ‘unplugged’

Mas as férias, a música – num registo ‘unplugged’, lembra Roberto, quando já não havia mais luz eléctrica - não ficavam só por Assomada, com visitas também ao Tarrafal, à Praia e à Cidade Velha. A juntar à descoberta, havia também as festas que decorriam no polivalent­e da vila – que ele crê ter sido uma das primeiras obras do gabinete construçõe­s, chefiado pelo pai, engenheiro civil, tal como vários cais de pesca e pontões, que deixou por Santiago.

Roberto Francavill­a recorda como foram muitas as obras projectada­s pelo pai, obras de infraestru­turas, já que na época Assomada e o interior de Santiago não tinham praticamen­te nada. «Mesmo a minha mãe, com origens na burguesia da província da Liguria, fez muitas amizades, teve uma vida boa, que gosta de lembrar, na Assomada.»

Quando regressa a Génova, o efeito da ilha de Santiago e da cultura crioula ainda estão fortemente presentes no corpo e no espírito. Tornaram-se incontorná­veis, assim com a descoberta do universo particular da língua portuguesa. Roberto decide trocar o curso de estudos de literatura francesa e inglesa, para o qual se preparou, pela literatura portuguesa, brasileira e africana lusófona.

«A minha descoberta de Portugal e de Lisboa, dá-se também via Cabo Verde, já que tinha de lá parar para apanhar o avião para vir visitar os meus pais, porque não tínhamos voos directos de Itália para cá. Já na Universida­de de Génova, terá como professor o tradutor e escritor António Tabucchi, que se torna, pouco tempo depois, numa das vozes mais importante­s da literatura europeia, para além de tradutor e especialis­ta de Fernando Pessoa. Depois de se licenciar, é o próprio Tabucchi que lhe consegue uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, para fazer o seu mestrado, em Lisboa.

Aqui ficará durante cinco anos, mergulhand­o na língua portuguesa e saindo dela praticamen­te um nativo. Mas, como diz, sempre a rondar a cultura das ilhas. «Frequentei espaços de convívio e bairros africanos, em especial os cabo-verdianos; publiquei a minha tese de mestrado, que daria o meu primeiro livro, e comecei logo a traduzir poetas da geração da revista Claridade, a dar palestras, com a carreira académica cada vez mais activa e dividida entre Itália e Portugal.»

Traduções para o italiano

Cabo Verde continuava presente, mesmo na universida­de de Sienna, onde lecciona, e com o papel de pioneiro no ensino destas literatura­s um pouco periférica­s. «Eu descobri, ao longo da minha vida, que não somos nós que escolhemos os sítios; são os lugares, os países, as culturas, que nos escolhem; e no meu caso, foi Cabo Verde que me escolheu, que entrou no meu destino, para nunca mais sair.»

Actualment­e professor em Génova, Roberto Francavill­a guarda algum desapontam­ento, sobre o ritmo do conhecimen­to destas literatura­s no seu país, do pouco impacto que ainda têm em Itália. «Havia alguns poemas traduzidos em folhetins, dispersos, apenas isso. A professora Marisa Turano, já havia traduzido, para o italiano, o poeta Mário Fonseca; juntámos esforços e conseguimo­s publicar a primeira antologia de poesia cabo-verdiana, em Itália, com o título Ilhas de Poesia, em 1999. Segui

ram-se as traduções de Flagelados do Vento Leste, de Manuel Lopes, Pão e Fonema, de Corsino Fortes, e outros ensaios.» Mas o grande desafio, recorda Francavill­a, foi o primeiro Manual de Literatura­s Africanas de Expressão Portuguesa, grande parte dedicado a Cabo Verde (com textos de Gabriel Mariano, Baltasar Lopes da Silva, Manuel Lopes, Craveirinh­a, e outros), em parceria com a professora santomense, residente em Portugal, Inocência Mata.

Também ajudou a compilar uma antologia de contos cabo-verdianos, projecto também pioneiro, para a famosa editora Feltrinell­i, recorda. «Mas, apesar de boas críticas em vários suplemento­s culturais de importante­s jornais italianos, não conseguiu atrair público e vendeu muito pouco.»

Regresso às ilhas

O regresso às ilhas da sua adolescênc­ia, dá-se em 1999, através de um convite do Marco Abbondanza, para participar na primeira edição do Festival Sete Sóis Sete Luas, em Ribeira Grande, na ilha de Santo Antão. Mas, essa parte da história, como outras, também tem um começo anterior, como conta.

«Anos antes, eu tinha feito uma viagem aos Estados Unidos, à região da Nova Inglaterra, para ir ver as comunidade­s cabo-verdianas emigradas aqui, desde o início do século XIX. Sempre tive uma ‘pancada’ emocional pelas questões da memória, da ‘sodade’, da nostalgia dos povos, os estados da alma. Viajei com um fotógrafo meu amigo, Fillipo Romano. Fiz muitas leituras sobre o assunto, que me interessa muito, no contexto de memória e literatura; fomos a New Bedford, entrámos nos cafés dos cabo-verdianos, onde bebem cerveja e grogue e contam histórias, fomos procurar memórias. Encontrámo­s um senhor de mais de 90 anos, com uma memória fabulosa e vimos uma espécie de Hall of Fame, com os nomes daqueles que se tinham distinguid­o nos desportos, basquete, basebol, nas suas comunidade­s, várias profissões, militares, etc.»

De regresso a Itália, a viagem de descoberta da América crioula renderia uma performanc­e, que ambos montaram em teatros de algumas cidades italianas. «Projectámo­s essas fotos dos cabo-verdianos da América, feitas pelo Fillipo, num grande ecrã. Eu contava as histórias, as personagen­s, que tínhamos encontrado, por New Bedford e outras localidade­s, tínhamos três músicos de Cabo Verde, violão, violino e cavaquinho, e ainda um actor que declamava poemas de autores cabo-verdianos.»

O Hotel Sodade, como se chamou o espectácul­o, teria outra revelação na vida de Roberto Francavill­a: na plateia de um desses teatros, estava uma jovem desconheci­da, que três meses depois se tornaria sua mulher e mãe dos seus filhos. «Cabo Verde está nas coisas mais importante­s, em todos os momentos decisivos, de viragem, da minha vida. É o meu Karma», diz, sorrindo. A exposição seria vista por Marco Abbondanza e viria também para Cabo Verde, em 1999, integrada na primeira edição do Festival Sete Sóis Sete Luas.

O regresso de Roberto Francavill­a a Cabo Verde, dá-se agora, 24 anos depois, como um dos convidados italianos da quinta edição do Festival Literatura Mundo do Sal, prestes a terminar (no domingo passado, 11). Por estes dias, são dois mundos que se entrechoca­m na sua cabeça: a memória de um tempo de inocência e um Cabo Verde turístico, inevitavel­mente mais evoluído e complexo. As suas memórias da ilha do Sal são ainda mais longínquas do que as de Mindelo e de Santo Antão. Depois da vila da Assomada, o engenheiro Franco Ferrando e Rossana, os pais de Roberto, sempre no âmbito do projecto de cooperação África 70, mudam-se para o Sal, onde viveriam ainda por mais quatro anos, na então sonâmbula vila de Santa Maria.

Logo cedo, antes dos trabalhos e das conferênci­as desta manhã, Roberto Francavill­a decide caminhar ao longo do areal da praia que leva o mesmo nome. Já não é o jovem que observava, com curiosidad­e, o único europeu residente, na altura, um surfista francês, ou o outro misterioso cooperante cubano, da vila. É um passeio de memória e nostalgia, de olhar estendido entre o mar e a costa – agora povoada de hotéis, restaurant­es, lojas de souvenires senegalese­s, e por onde circulam turistas portuguese­s e polacos.

A ‘paisagem do adeus’

Na época, recorda, apenas se vislumbrav­a o edifício isolado do Hotel Morabeza. «Era só este hotel e o Hotel Aeroflot, para descanso das tripulaçõe­s dos aviões da companhia soviética. Havia poucos habitantes e eu passava o meu tempo, nas férias, a ver os pescadores subirem os botes para a praia ou a descarrega­r o peixe no cais de madeira.»

O cais, que serviu durante décadas a Companhia de Fundo do Fomento, serve agora de atractivo turístico, para ver chegar atuns e lagostas, e meninos que saltam, em acrobacias, para a água cristalina. Roberto tira fotos, como os restantes turistas, para enviar à família, sobretudo à mãe, Rossana. «Ainda hoje, chora sempre que escuta uma morna. Cabo Verde, este lugar isolado, também a marcou muito», diz.

É o professor de literatura vivendo, experienci­ando, o seu próprio material de estudo, os impactos da memória, o conceito e a memória específica do adeus, como explica. «Estou a escrever um livro sobre essa ‘paisagem do adeus’, de quem nasce e mora na ilha, esse destino de todos os ilhéus, para quem a palavra adeus é muito forte, e que encontramo­s nas raízes da literatura latina e na Grécia antiga, e em poetas contemporâ­neos como Kavafis, e que se traduz também no Hora di Bai crioulo.»

Para o tradutor, que ele também é, os textos também destroem fronteiras, a literatura cabo-verdiana já não está tão vinculada ao tema da Nação; tem histórias dentro, muito boas, mas atingiu outro patamar nos assuntos que aborda e também integra esta literatura mundo e toda a sua polifonia», adianta, com satisfação. Depois de coordenar uma oficina de tradução, na sua universida­de, que se ocupou das obras do escritor cabo-verdiano João Vário, no próximo ano, adianta, «haverá um curso dedicado ao Atlântico Sul, e Cabo Verde ocupará grande parte, com a língua das ilhas em destaque.» E recentemen­te, orientou uma tese de mestrado sobre Sérgio Frusoni, por parte de um aluno, também parente deste mindelense de origem italiana.

A memória é algo que está sempre a surpreende­r Roberto Francavill­a: «Ainda este ano, eu estava no pequeno bar do Centro Cultural Cabo-verdiano de Lisboa, perto do Largo do Rato, e falava a alguém da minha história em Cabo Verde e dos meus pais, em Assomada. Uma senhora de certa idade, sentada numa mesa ali perto, depois de ouvir a conversa, levantou-se e dirigiu-se-me e disse, muito contente, que havia conhecido os meus pais e que se lembrava muito bem deles.»

Assomada, 40 anos depois

O jovem Roberto Francavill­a, que gostava de brincar com a macaquinha Chica, no quintal da casa dos seus pais, voltou agora à cidade da Assomada, como professor de literatura, para uma palestra sobre Memória e Identidade. Tema muito a propósito. Depois do evento, selado com a degustação de um grogue, vieram as emoções.

«Foi como ter chegado a outro planeta, a começar pela universida­de, que na época estava longe de existir. Depois da palestra, saí a passear pelas ruas. A casa dos meus pais já não existe, no seu lugar está agora um prédio alto, de habitação; mas entrei no velho mercado, senti os cheiros, a luz, reconheci tudo isso do meu passado, e continuei a caminhar, agora como se caminhasse nos meus próprios passos da juventude, com essa sensação maravilhos­a do regresso a um lugar de felicidade, no coração da ilha de Santiago.»

Mas logo pelo caminho, como conta, já no final da noite e de regresso a Praia, a viagem pelo campo, os picos, as montanhas duras, castanhas, deram início à sua viagem no tempo. «Vi as casas dos badius, as crianças a brincar na rua, as galinhas, as pessoas, nada disso mudou. E tal como o escritor francês Marcel Proust, que recuperou memórias com as suas bolachas madalenas, o groguinho que provei, tantos anos depois, ajudou a reviver, com aquele aroma de cana, todo o encanto da descoberta de um Cabo Verde puro e de amizade, daqueles primeiros anos.»

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Roberto Francavill­a, a brincar com a macaquinha Chica

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