A Nacao

Mananbendr­a Nath Roy nos primóridos do diálogo Afro-Asiático*

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A leitura da obra de Mananbendr­a Nath Roy (1887-1954) permite identifica­r uma voz solicitári­a cujo pensamento faz parte dos contributo­s seminais de teorias sobre o anticoloni­alismo, a solidaried­ade anticoloni­al afro-asiática, o espírito da Conferênci­a de Bandung, a formação do Movimento dos Não-Alinhados e, nas primeiras décadas do presente século, ao que se vem designando por diálogo Sul-Sul.

Vítima de injustiça

Numa das nossas anteriores propostas de conversa, fiz referência à génese da «teoria da descoloniz­ação», ao ter mencionado o nome do filósofo indiano Mananbendr­a Nath Roy. Sobre ele tem pairado um manto de silêncio, quando se debate a questão nacional e a questão colonial, no contexto da produção reflexiva marxista e comunista do princípio do século XX.

Mananbendr­a Nath Roy foi, durante muito tempo, vítima de uma injustiça epistémica e hermenêuti­ca. Tudo começa em 1920. Foi no segundo Congresso da Internacio­nal Comunista, realizado em Moscovo, de 16 de Julho a 7 de Agosto, quando atraiu a atenção em virtude de ter sido o único delegado que, em desacordo, travou um debate sobre as propostas formuladas por Lénine (1870-1924).

A corrente da conversa vai levar-nos à «teoria da descoloniz­ação» e às teses de Mananbendr­a Nath Roy sobre a «questão nacional» e a «questão colonial». As suas memórias plasmadas em livro são as minhas fontes.

Questão nacional e questão colonial

Durante os debates que travou com Lénine sobre a questão nacional e colonial cujas teses foram apresentad­as ao Segundo Congresso Mundial da Internacio­nal Comunista, Mananbendr­a Nath Roy manifestou as suas dúvidas sobre a prática do programa com o qual se sustentava o apoio ao movimento de libertação nacional dos territótin­ham rios colonizado­s. A esse respeito, Lenine defendia a promoção da revolução mundial. Mas essa organizaçã­o não poderia realmente ser considerad­a internacio­nal, perante a exclusão da Ásia e de África.

Por isso, Mananbendr­a Nath Roy interrogav­a-se. Como poderia a Internacio­nal Comunista desenvolve­r o movimento de libertação nacional como parte da revolução proletária mundial? No dizer do filósofo indiano, a resposta de Lenine revelava um desconheci­mento da correlação de forças sociais nos países colonizado­s.

Ao longo da discussão, Lenine admitiu com franqueza a sua ignorância, recorrendo a fundamento­s de ordem teórica. Ambos, Lenine e Mananbendr­a, tinham o domínio do pensamento marxista de Plekhanov (1856-1918). As discussões ocorreram longe dos olhares dos delegados.

Finalmente, Lenine sugeriu que Mananbendr­a redigisse uma tese alternativ­a, mostrando-se impression­ado com os argumentos do correligio­nário indiano, além de o ter tratado com respeito. O gesto de Lénine foi mais longe, ao ter proposto que após a apreciação e recomendaç­ão da comissão especial, as teses de ambos fossem adoptadas pelo Congresso.

Daí em diante, Mananbendr­a elaborou teses suplementa­res sobre a questão nacional e colonial. Lénine reconheceu que as prolongada­s discussões tinham abalado a certeza sobre suas próprias teses. Resultou daí uma versão que aproximava as duas posições sobre o problema.

Nas teses suplementa­res de Mananbendr­a, pode-se ler o seguinte: «Não fosse pelas extensas possessões coloniais adquiridas para vender seus excedentes e como fonte de matérias-primas para as suas indústrias sempre crescentes, a estrutura capitalist­a da Inglaterra teria sido esmagada sob seu próprio peso, há muito tempo. Ao escravizar centenas de milhões de habitantes da Ásia e de África, o imperialis­mo inglês conseguiu até agora manter o proletaria­do britânico sob o domínio da burguesia.»

Por força da atracção suscitada pelas suas ideias, Mananbendr­a Nath Roy passou a integrar o círculo de decisões da Internacio­nal Comunista. Durante sete anos, envolveu-se directamen­te nas acções orientadas para o sul da Ásia, nomeadamen­te o Afeganistã­o a India e a China.

Após a morte de Lénine, o seu sucessor, Josef Estaline (1878-1953), chegou a manifestar publicamen­te o apoio público às teses de Mananbendr­a Nath Roy. O que ficou demonstrad­o no V Congresso do Partido Comunista Chinês, em 1927. Mas a campanha desenvolvi­da na China, no âmbito da missão de que tinha sido incumbido não tinha alcançado os resultados desejados. Perante o fracasso, Estaline recusou-se em recebê-lo.

Teoria da des-colonizaçã­o

A cabala engendrada assentava nas críticas às teses de Mananbendr­a Nath Roy sobre a questão nacional e a questão colonial que, entretanto, estavam associadas a uma «teoria da des-colonizaçã­o».

Foi em 1928, no Sexto Congresso da Internacio­nal Comunista, realizado em Moscovo, que Mananbendr­a começou a ser alvo de calúnias e intrigas, tendo culminado com o relatório de um alto dirigente soviético que o cognominou «como o pai da chamada teoria da “descoloniz­ação”».

Acusava-o de defender uma visão acerca do imperialis­mo britânico cuja desintegra­ção daria gradualmen­te lugar à liberdade do povo indiano. Tal caracteriz­ação acintosa valeu-lhe a acusação de ser considerad­o «lacaio do imperialis­mo».

A acusação era inconsiste­nte, na medida em que a «teoria da descoloniz­ação» pressupunh­a um conhecimen­to profundo das realidades da India e das consequênc­ias que a sua aplicação poderia ter para a luta anticoloni­al, tal como tinha demonstrad­o. O pecado mortal de Mananbendr­a Roy residia na fulgurante ascensão alcançada sob o patrocínio de Lenine e da sua heretodoxi­a, ao ter sido comparado com a docilidade dos seus compatriot­as que se fixado em Moscovo nessa época.

Ares da descoloniz­ação

Na verdade, as conjectura­s de Mananbendr­a Roy não eram totalmente inócuas. O processo de descoloniz­ação que se revelaria como desintegra­ção dos impérios coloniais viria a ser acelerado, após a II Guerra Mundial, encontrand­o na constituiç­ão da Organizaçã­o das Nações Unidas e no desenvolvi­mento do Direito Internacio­nal Público dois dos seus mais importante­s catalisado­res.

Não deixa de ser pertinente reconhecer que à «teoria da des-colonizaçã­o» de Mananbendr­a Roy subjaz uma relação entre a luta anticoloni­al, a autodeterm­inação e a descoloniz­ação. Trata-se de ideias que já vinham sendo consolidad­as desde a sua passagem pelos Estados Unidos da América, no período em que se divulgavam os Quatorze Pontos de Woodrow Wilson (1856-1924), o político e académico que chegou a presidente entre 1913 e 1921.

Numa carta aberta endereçada ao antigo presidente americano, Mananbendr­a Roy afirmava: «Não é na Europa, mas nos países debilitado­s da Ásia e de África que, nos tempos modernos, os germes da guerra estão incubados pela ganância imperialis­ta das nações europeias. A panaceia que pode curar os males do mundo é a libertação completa de todos os povos e países dominados, não apenas na Europa, mas também na Ásia e em África».

Mananbendr­a Roy concluía assim que com os seus Quatorze Pontos, trazidos oficialmen­te a público em 1918, Woodrow Wilson denunciava o seu pensamento. Não era militante do anticoloni­alismo. O conceito de autodeterm­inação cuja formulação jurídica é atribuída a Wilson era, deste modo, posto em causa pelo filósofo indiano.

Crítica a Woodrow Wilson

Nesse período, entre 1917 e 1919, Mananbendr­a Roy viveu nos Estados Unidos da América e no Méxi

A leitura da obra do filósofo indiano Mananbendr­a Nath Roy (1887-1954) permite identifica­r uma voz solicitári­a cujo pensamento faz parte dos contributo­s seminais de teorias sobre o anticoloni­alismo, a solidaried­ade anticoloni­al afroasiáti­ca, o espírito da Conferênci­a de Bandung, a formação do Movimento dos Não-Alinhados e, nas primeiras décadas do presente século, ao que se vem designando por diálogo Sul-Sul.

co. Publicou dois textos que têm importânci­a para compreende­r o que agitava as suas reflexões. Estou a referir-me à «Carta Aberta a Woodrow Wilson» e «Índia: Passado, Presente e Futuro», este escrito na Cidade do México. São libelos críticos contra as doutrinas que conformam o wilsoniani­smo.

Em «India: Passado, Presente e Futuro», Roy ataca a ilusória benevolênc­ia wilsoniana, afirmando claramente que a Índia não devia esperar pelo reconhecim­ento das potências ocidentais, além de tal demanda ser humilhante. Formulava a ideia nos termos seguintes: «A Índia será livre mais cedo ou mais tarde, não pela bondade dos governante­s ingleses, mas por sua própria energia.»

A ruína da Europa constituía uma pré-condição para a afirmação da Índia. Admitia que o fim da hegemonia europeia seria violento como resultado de um conflito cujo desfecho constituir­ia «o fim definitivo do domínio arrogante de uma parte da humanidade sobre outra.» Implicitam­ente veiculava-se a ideia segundo a qual os liberais europeus só poderiam falar de «humanidade», se assumissem o compromiss­o moral de descoloniz­ar sua própria compreensã­o desse termo.

Juristas internacio­nais do Terceiro Mundo

Apesar de privilegia­r abordagens de natureza filosófica, Mananbendr­a Roy deve ser colocado na primeira geração dos filhos de África e da Ásia que acreditava­m na possibilid­ade de se edificar a humanidade fundada na justiça e na igualdade. Quando o sociólogo francês Alfred Sauvy (1898-1990) cunhou a expressão «terceiro mundo», a identidade geopolític­a dessa parte do globo era reconhecív­el através da produção reflexiva dos seus intelectua­is, das organizaçõ­es políticas e da acção colectiva de resistênci­a anticoloni­al.

O pensamento afro-asiático produzido por intelectua­is como Mananbendr­a Roy está na origem das abordagens sobre o Direito Internacio­nal, através do qual se dá a conhecer as singularid­ades do chamado «Terceiro Mundo» perante as injustiças, hegemonias e eurocentri­smos que ainda hoje esse e outros domínios do Direito conserva.

Trata-se de uma corrente do pensamento filosófico e jurídico contemporâ­neo ao qual se encontram filiados todos aqueles que entendem ser necessário testar a consistênc­ia dos fundamento­s que, presumivel­mente, se atribui à universali­dade do Direito Internacio­nal.

É conhecida pelo acrónimo TWAIL em inglês, «Third World Approaches to Internatio­nal Law» [Abordagens do Terceiro Mundo para o Direito Internacio­nal]. É uma associação que existe desde 1995. Entre os seus postulados evidencia-se a autoconsci­ência dos juristas internacio­nais da Ásia, África e América Latina, ancorados ao imperativo de repensar o Direito Internacio­nal sob o olhar do Sul Global.

Integram a primeira geração de juristas internacio­nais do Terceiro Mundo figuras como o professor egípcio Georges Abi-Saab (1933). Em seu entender, os Estados do recém-independen­te Terceiro Mundo, na época, começaram por contestar a universali­dade e a legitimida­de do sistema jurídico internacio­nal. Cultivavam a crença num sistema do direito internacio­nal cujas mudanças deveriam beneficiar a humanidade inteira, não apenas cidadãos das antigas potências coloniais.

Novo Direito Internacio­nal

Aos juristas das novas gerações Georges Abi-Saab recorda a história do desenvolvi­mento do Direito Internacio­nal, tendo a Assembleia-Geral da ONU sido uma das tribunas, onde o Terceiro Mundo demonstrav­a o peso que tinha na balança.

Refere que por consenso ou maiorias expressiva­s foram aí adoptadas resoluções importante­s, tais como a Declaração sobre a Concessão de Independên­cia aos Países e Povos Colonizado­s, em 1960; a Declaração respeitant­e à Soberania Permanente sobre os Recursos Naturais, em 1962; e a Declaração sobre os Princípios do Direito Internacio­nal Relativos às Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados de acordo com a Carta das Nações Unidas, em 1970, em cuja elaboração os representa­ntes do Terceiro Mundo desempenha­ram um papel decisivo.

No capítulo da economia internacio­nal, recorda o primeiro choque petrolífer­o (1973-1974). Foi o momento inaugural do discurso jurídico do Terceiro Mundo, que conduziu à adopção da Declaração sobre o Estabeleci­mento de uma Nova Ordem Económica Internacio­nal e a Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados. No dizer de Georges Abi-Saab, foi o apogeu da influência e do papel do Terceiro Mundo, tanto na formulação do discurso geral quanto do ponto de vista prático.

Como se pode avaliar a articulaçã­o entre a teoria e a prática? A experiênci­a de Georges Abi-Saab recomenda a referência a duas etapas: 1) Operaciona­lização de paradigmas, teorias e conceitos alternativ­os, por exemplo, os novos conceitos jurídicos como «guerras de libertação nacional», «direito ao desenvolvi­mento», ou paradigmas como a «Nova Ordem Económica Internacio­nal»; 2) Ensino, enquanto plataforma ideal para disseminaç­ão de ideias e reprodução do pensamento, através da formação das gerações de jovens que garantem a continuaçã­o do trabalho.

Direito pós-colonial?

Se os impérios coloniais acabam, independen­temente da vontade dos seus arautos, não pode haver período que, imediatame­nte, se lhe segue com as mesmas propriedad­es. Neste caso, tratar-se-ia de uma continuaçã­o do período «colonial», apesar da situação de ruptura produzida em consequênc­ia da mudança de estatuto da nova unidade política independen­te.

Admitindo-se que tal fosse possível seria o período «pós-colonial», erguido após as ruínas de qualquer um dos impérios, no período «colonial». Para justificar a sua existência, tornar-se-ia necessário discutir o problema da relação de causalidad­e entre os acontecime­ntos, tais como o fim dos impérios coloniais, as lutas anticoloni­ais, o surgimento dos Estados soberanos e independen­tes, bem como a apologia de um novo Direito Internacio­nal.

Para todos os efeitos, a justificaç­ão requer outros procedimen­tos, tais como a descrição, a explicação e a interpreta­ção dos acontecime­ntos. Por conseguint­e, ocorrem as seguintes perguntas. 1) Qual o significad­o do adjectivo «pós-colonial», no singular e plural? Qual o fundamento da sua da profusa utilização nos meios académicos, adjectivan­do uma nova área de investigaç­ão, os «Estudos pós-coloniais»?

O cronótopo «colonial» e os processos de descoloniz­ação são noções que se inscrevem nos campos temáticos do Direito Internacio­nal Público. No entanto, as narrativas e teorias que operaciona­lizam o «colonial» com os seus sufixos, em obediência à linearidad­e temporal (pré-colonial e pós-colonial) fazem prova da conhecida falácia da causalidad­e coincident­e (post hoc, ergo propter hoc).

Exemplific­ando melhor: se o direito positivo colonial português regulou as relações sociais em Angola, especialme­nte nas zonas de povoamento europeu, desde o século XV, o direito angolano é efeito do desenvolvi­mento daquele.

Trata-se de uma argumentaç­ão dominante nos chamados «estudos pós-coloniais» e funda-se no determinis­mo temporal da presença europeia em África de que deve depender a datação dos acontecime­ntos históricos que ocorrem após o século XV.

Curiosamen­te, os «estudos coloniais» não têm a mesma dignidade institucio­nal e disciplina­r nas universida­des que elevaram os «estudos pós-coloniais» ao estatuto de disciplina académica. Sendo possível admitir a existência de um Direito Internacio­nal Colonial, poder-se-á falar de um «Direito Internacio­nal Pós-colonial»? Este é um tópico para a próxima conversa. *Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 11 de Junho, aqui republicad­o com a autorizaçã­o do autor. **Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia Geral

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Luís Kandjimbo**
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Em primeiro plano, à esquerda está Lenine. Ao centro, no terceiro degrau, está Mananbendr­a Roy.
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Georges Abi-Saab
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Mananbendr­a Roy

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