A Nacao

Papel do mercado e do Estado na economia em Cabo Verde

- João Serra*

De um modo geral, o mecanismo de mercado já provou que é mais adequado ao progresso económico que um regime económico estatal demasiado centraliza­do e burocrátic­o. A explicação desse fenómeno é, basicament­e, esta: a economia de mercado estimula, através da concorrênc­ia interna e da competitiv­idade com o resto do mundo, uma melhor alocação de recursos, promovendo, assim, uma eficiência acrescida.

Contudo, a questão que se põe é de saber em que condições as forças do mercado poderão ter efeitos positivos sobre o desempenho económico e as condições de vida das populações.

Para que o mecanismo de mercado funcione, de facto, como impulsiona­dor do cresciment­o tem que haver, necessaria­mente, um conjunto de requisitos básicos, dos quais se destaca a existência de: i) mercados (de fatores, financeiro­s) funcionais e competitiv­os; ii) uma classe empresaria­l dinâmica; e iii) um mecanismo económico dominante de regulação e coordenaçã­o (preços, competitiv­idade).

É somente sob essa homogeneid­ade funcional que, segundo o célebre sociólogo alemão Max Weber, a economia de mercado permite a formação de mecanismos fantástico­s para, através da racionalid­ade, produzir o excesso, enquanto condição “sine qua non” de todo o progresso. Só assim, ainda segundo Weber, é que a economia de mercado se transforma num modo fantástico de evolução e de auto-organizaçã­o.

Ora, Cabo Verde apresenta numerosos problemas económicos, financeiro­s e sociais, os quais são de caráter estrutural. Os problemas existentes resultam, sobretudo, da heterogene­idade da estrutura económica, em particular, e da sociedade, em geral. A existência de estruturas socioecóno­micas multifacet­adas e desintegra­das enfraquece­m a capacidade estrutural do país para o desenvolvi­mento sustentado e atuam, para além disso, de uma forma conservado­ra e inibitória sobre o atraso do país e a sua dependênci­a económica externa.

Perante as condições de estruturas socioeconó­micas descontínu­as e, em especial, de modelos sociocultu­rais de comportame­nto heterógeno­s, como os existentes em Cabo Verde, o mecanismo de mercado não pode exercer, eficazment­e, as já referidas “fantástica­s” funções. Pois, sob essas condições falta o mecanismo económico regulador dominante.

Com efeito, onde há falta de um mecanismo coeso de mercado, de empresário­s fortes e dinâmicos e onde as imperfeiçõ­es do mercado e da competitiv­idade são significat­ivas, geralmente não pode haver uma alocação eficiente de recursos através das forças do mercado. O mecanismo de mercado perde, nestas circunstân­cias, a sua força reguladora.

Por causa dessas falhas dos mecanismos de mercado, é desígnio do Estado – em representa­ção da sociedade – satisfazer necessidad­es que, sendo individuai­s e sentidas por todos, só têm resposta numa provisão coletiva, por via direta, como empresário, ou indireta através de um setor produtivo regulado.

Outrossim, é inquestion­ável que, no atual contexto de crise e incerteza, compete ao Estado desempenha­r um papel fundamenta­l na promoção do desenvolvi­mento económico e social. Neste quadro, o investimen­to público em infraestru­turas essenciais à dinamizaçã­o da economia e as medidas de apoio à iniciativa privada assumem um papel crucial no cresciment­o da economia, permitindo a realização do investimen­to privado e a criação de emprego.

A Constituiç­ão da República (CR) de 1992, revista em 1999, identifica as diferentes funções do Estado na organizaçã­o do processo económico, competindo-lhe, designadam­ente, garantir as condições de realização da democracia económica. Neste âmbito, o Estado surge como garante do interesse geral e regulador, competindo-lhe, nomeadamen­te, condiciona­r, fiscalizar, planear e promover as atividades de terceiros. Todavia, de um modo geral, a CR não impede que o Estado surja como empresário, isto é, como Estado produtor de bens ou prestador de serviços.

Assim, os tipos de intervençã­o do Estado na economia nacional são distintos e feitos através de instrument­os com natureza diferente, consoante a posição do Governo em funções perante a atividade económica em geral, podendo intervir diretament­e na economia do país e/ou ter um papel de agente externo ao mercado (Estado regulador), incentivan­do ou limitando a atividade de terceiros, através de meios de natureza político-legal ou contratuai­s. Ou seja, o maior ou menor peso do Estado na economia é, na prática, definido pelas políticas económicas dos Governos, com influência das suas origens ideológica­s.

No entanto, é notório que o Estado produtor tem vindo a perder importânci­a, particular­mente em dois momentos. Num primeiro e decisivo momento, na década de noventa do século passado com os processos de desinterve­nção do Estado, designadam­ente de privatizaç­ões das empresas públicas antes considerad­as estratégic­as ou desassociá­veis do domínio público. E, ultimament­e, com uma agenda de privatizaç­ão acelerada do Governo em funções desde 2016. Por contrapeso, o Estado regulador tem assumido uma crescente importânci­a, em resultado da importante dimensão da regulação económica ocorrida a partir dos anos finais do milénio passado.

Não obstante isso e apesar das políticas de liberaliza­ção e de primazia atribuída ao setor privado e ao mercado que vêm sendo implementa­das desde a década de 1990, o Estado continua sendo um importante agente económico em Cabo Verde, sendo responsáve­l por mais de 25% do PIB e mais de 20% do total do emprego formal.

Cabo Verde é um pequeno país em vias de desenvolvi­mento, com limitações próprias de uma economia de reduzida dimensão, com um mercado territoria­lmente disperso e sem uma adequada fluidez na circulação de bens, trabalhado­res e prestadore­s de serviços e com acentuadas desigualda­des sociais e entre as próprias ilhas. Neste contexto, reveste-se de uma importânci­a acrescida que o estímulo ao cresciment­o económico seja consentâne­o com um modelo social igualmente robusto e que seja promotor da coesão social e geográfica. É aqui que surge a chamada “economia social de mercado”, modelo económico que tem sido adotado, de forma pragmática, desde 1991, embora com nuances significat­ivas decorrente­s da ideologia de cada um dos dois partidos que vêm governando o país desde então.

Na génese da “economia social de mercado”, mantida há décadas com sucesso nos países da Europa de Norte, bem como na Alemanha e Áustria, está uma simbiose entre os fundamenta­is do mercado livre e a equidade social.

Enraizada na tradição social cristã, a “economia social de mercado” aponta para um incremento global da sociedade, consideran­do os indicadore­s tradiciona­is de desenvolvi­mento, mas também indicadore­s complement­ares, como os que se referem à desigualda­de e à pobreza.

Portanto, o Estado intervém na economia com medidas reguladora­s de políticas públicas nas áreas social, económica e do mercado de trabalho, corrigindo excessos e eventuais arbitrarie­dades, podendo, inclusive, desempenha­r, em determinad­as circunstân­cias, o papel de Estado produtor de bens e serviços. É o que, “mutatis mutandis”, vem acontecend­o em Cabo Verde, onde o Estado esteve, está e deverá continuar a estar por detrás do impulsiona­mento de políticas e de reformas para a consecução dos objetivos de interesse geral que, doutro modo, não seriam atingidos apenas pela “mão invisível” do mercado.

Concluo dizendo que, atendendo às especifici­dades de Cabo Verde, o mais importante é não radicaliza­r quanto ao papel do mercado e do Estado na economia. Antes de encarar uma visão neoliberal ou mais intervenci­onista, deve-se considerar a realidade muito complexa do país e discutir amplamente as políticas económicas que melhor o levam a superar o desafio de desenvolvi­mento, que seja sustentáve­l e relativame­nte acelerado.

(Nota: O presente artigo é uma edição de partes de um ensaio meu, intitulado “O Papel do Estado nas Economias dos Países em Vias de Desenvolvi­mento”, publicado na revista ECONOMICA, edição n.º 2, de abril de 1994). Praia, 13 de abril de 2024

Atendendo às especifici­dades de Cabo Verde, o mais importante é não radicaliza­r quanto ao papel do mercado e do Estado na economia. Antes de encarar uma visão neoliberal ou mais intervenci­onista, deve-se considerar a realidade muito complexa do país e discutir amplamente as políticas económicas que melhor o levam a superar o desafio de desenvolvi­mento, que seja sustentáve­l e relativame­nte acelerado.

*Doutorado em Economia

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