Papel do mercado e do Estado na economia em Cabo Verde
De um modo geral, o mecanismo de mercado já provou que é mais adequado ao progresso económico que um regime económico estatal demasiado centralizado e burocrático. A explicação desse fenómeno é, basicamente, esta: a economia de mercado estimula, através da concorrência interna e da competitividade com o resto do mundo, uma melhor alocação de recursos, promovendo, assim, uma eficiência acrescida.
Contudo, a questão que se põe é de saber em que condições as forças do mercado poderão ter efeitos positivos sobre o desempenho económico e as condições de vida das populações.
Para que o mecanismo de mercado funcione, de facto, como impulsionador do crescimento tem que haver, necessariamente, um conjunto de requisitos básicos, dos quais se destaca a existência de: i) mercados (de fatores, financeiros) funcionais e competitivos; ii) uma classe empresarial dinâmica; e iii) um mecanismo económico dominante de regulação e coordenação (preços, competitividade).
É somente sob essa homogeneidade funcional que, segundo o célebre sociólogo alemão Max Weber, a economia de mercado permite a formação de mecanismos fantásticos para, através da racionalidade, produzir o excesso, enquanto condição “sine qua non” de todo o progresso. Só assim, ainda segundo Weber, é que a economia de mercado se transforma num modo fantástico de evolução e de auto-organização.
Ora, Cabo Verde apresenta numerosos problemas económicos, financeiros e sociais, os quais são de caráter estrutural. Os problemas existentes resultam, sobretudo, da heterogeneidade da estrutura económica, em particular, e da sociedade, em geral. A existência de estruturas socioecónomicas multifacetadas e desintegradas enfraquecem a capacidade estrutural do país para o desenvolvimento sustentado e atuam, para além disso, de uma forma conservadora e inibitória sobre o atraso do país e a sua dependência económica externa.
Perante as condições de estruturas socioeconómicas descontínuas e, em especial, de modelos socioculturais de comportamento heterógenos, como os existentes em Cabo Verde, o mecanismo de mercado não pode exercer, eficazmente, as já referidas “fantásticas” funções. Pois, sob essas condições falta o mecanismo económico regulador dominante.
Com efeito, onde há falta de um mecanismo coeso de mercado, de empresários fortes e dinâmicos e onde as imperfeições do mercado e da competitividade são significativas, geralmente não pode haver uma alocação eficiente de recursos através das forças do mercado. O mecanismo de mercado perde, nestas circunstâncias, a sua força reguladora.
Por causa dessas falhas dos mecanismos de mercado, é desígnio do Estado – em representação da sociedade – satisfazer necessidades que, sendo individuais e sentidas por todos, só têm resposta numa provisão coletiva, por via direta, como empresário, ou indireta através de um setor produtivo regulado.
Outrossim, é inquestionável que, no atual contexto de crise e incerteza, compete ao Estado desempenhar um papel fundamental na promoção do desenvolvimento económico e social. Neste quadro, o investimento público em infraestruturas essenciais à dinamização da economia e as medidas de apoio à iniciativa privada assumem um papel crucial no crescimento da economia, permitindo a realização do investimento privado e a criação de emprego.
A Constituição da República (CR) de 1992, revista em 1999, identifica as diferentes funções do Estado na organização do processo económico, competindo-lhe, designadamente, garantir as condições de realização da democracia económica. Neste âmbito, o Estado surge como garante do interesse geral e regulador, competindo-lhe, nomeadamente, condicionar, fiscalizar, planear e promover as atividades de terceiros. Todavia, de um modo geral, a CR não impede que o Estado surja como empresário, isto é, como Estado produtor de bens ou prestador de serviços.
Assim, os tipos de intervenção do Estado na economia nacional são distintos e feitos através de instrumentos com natureza diferente, consoante a posição do Governo em funções perante a atividade económica em geral, podendo intervir diretamente na economia do país e/ou ter um papel de agente externo ao mercado (Estado regulador), incentivando ou limitando a atividade de terceiros, através de meios de natureza político-legal ou contratuais. Ou seja, o maior ou menor peso do Estado na economia é, na prática, definido pelas políticas económicas dos Governos, com influência das suas origens ideológicas.
No entanto, é notório que o Estado produtor tem vindo a perder importância, particularmente em dois momentos. Num primeiro e decisivo momento, na década de noventa do século passado com os processos de desintervenção do Estado, designadamente de privatizações das empresas públicas antes consideradas estratégicas ou desassociáveis do domínio público. E, ultimamente, com uma agenda de privatização acelerada do Governo em funções desde 2016. Por contrapeso, o Estado regulador tem assumido uma crescente importância, em resultado da importante dimensão da regulação económica ocorrida a partir dos anos finais do milénio passado.
Não obstante isso e apesar das políticas de liberalização e de primazia atribuída ao setor privado e ao mercado que vêm sendo implementadas desde a década de 1990, o Estado continua sendo um importante agente económico em Cabo Verde, sendo responsável por mais de 25% do PIB e mais de 20% do total do emprego formal.
Cabo Verde é um pequeno país em vias de desenvolvimento, com limitações próprias de uma economia de reduzida dimensão, com um mercado territorialmente disperso e sem uma adequada fluidez na circulação de bens, trabalhadores e prestadores de serviços e com acentuadas desigualdades sociais e entre as próprias ilhas. Neste contexto, reveste-se de uma importância acrescida que o estímulo ao crescimento económico seja consentâneo com um modelo social igualmente robusto e que seja promotor da coesão social e geográfica. É aqui que surge a chamada “economia social de mercado”, modelo económico que tem sido adotado, de forma pragmática, desde 1991, embora com nuances significativas decorrentes da ideologia de cada um dos dois partidos que vêm governando o país desde então.
Na génese da “economia social de mercado”, mantida há décadas com sucesso nos países da Europa de Norte, bem como na Alemanha e Áustria, está uma simbiose entre os fundamentais do mercado livre e a equidade social.
Enraizada na tradição social cristã, a “economia social de mercado” aponta para um incremento global da sociedade, considerando os indicadores tradicionais de desenvolvimento, mas também indicadores complementares, como os que se referem à desigualdade e à pobreza.
Portanto, o Estado intervém na economia com medidas reguladoras de políticas públicas nas áreas social, económica e do mercado de trabalho, corrigindo excessos e eventuais arbitrariedades, podendo, inclusive, desempenhar, em determinadas circunstâncias, o papel de Estado produtor de bens e serviços. É o que, “mutatis mutandis”, vem acontecendo em Cabo Verde, onde o Estado esteve, está e deverá continuar a estar por detrás do impulsionamento de políticas e de reformas para a consecução dos objetivos de interesse geral que, doutro modo, não seriam atingidos apenas pela “mão invisível” do mercado.
Concluo dizendo que, atendendo às especificidades de Cabo Verde, o mais importante é não radicalizar quanto ao papel do mercado e do Estado na economia. Antes de encarar uma visão neoliberal ou mais intervencionista, deve-se considerar a realidade muito complexa do país e discutir amplamente as políticas económicas que melhor o levam a superar o desafio de desenvolvimento, que seja sustentável e relativamente acelerado.
(Nota: O presente artigo é uma edição de partes de um ensaio meu, intitulado “O Papel do Estado nas Economias dos Países em Vias de Desenvolvimento”, publicado na revista ECONOMICA, edição n.º 2, de abril de 1994). Praia, 13 de abril de 2024
Atendendo às especificidades de Cabo Verde, o mais importante é não radicalizar quanto ao papel do mercado e do Estado na economia. Antes de encarar uma visão neoliberal ou mais intervencionista, deve-se considerar a realidade muito complexa do país e discutir amplamente as políticas económicas que melhor o levam a superar o desafio de desenvolvimento, que seja sustentável e relativamente acelerado.
*Doutorado em Economia