Morreu René Pélissier, historiador das guerras da pacificação
Era um dos maiores especialistas da história da presença portuguesa em África, particularmente das “guerras da pacificação” que Portugal realizou na Guiné, Angola e Moçambique, nos finais do século XIX e início do século XX. Tinha 88 anos, era francês.
Nascido em Nanterre, em 1935, morreu nos finais de Março, no seu país, França, o historiador René Pélissier, um dos maiores entendidos da presença portuguesa em África. “A história da Guiné – Portugueses e africanos na Senegâmbia, 1841 – 1936”, em dois volumes, é um trabalho fundamental para a compreensão do passado desse país irmão, que se entrelaça com a história de Cabo Verde desse período. Um trabalho que mereceu um prefácio elogioso de Léopold Sedar Senghor, na altura presidente do Senegal.
Havia quem considerasse, contudo, Pélissier um “anti-cabo-verdiano”, dada a forma como apresenta o papel dos cabo-verdianos na Guiné. Pélissier sabia-o. Chegou a reclamar que havia um cordão sanitário à volta do seu trabalho relativamente à Guiné e Cabo Verde por parte dos dirigentes do PAIGC/CV. Interessante é de resto o impacto que o seu livro sobre a Guiné, de leitura posterior, acabou por ter em alguns veteranos da luta pela independência de Cabo Verde, caso de Honório Chantre (ver xxx).
Tudo porque, como chegou a escrever, até 1878 (ano do massacre de Bolor, altura em que a Guiné deixa de ser governada a partir de Cabo Verde), o país irmão era colónia de uma “colónia miserável” que era este arquipélago, com todos os problemas e males que poderiam advir de uma tal administração à distância. Inclusive para Cabo Verde, que volta e meia era chamado a ir ao socorro das forças portuguesas na Guiné, exaurindo ainda mais os poucos recursos financeiros deste arquipélago.
Colonialismo sem colonos
Além dos livros publicados, René Pélissier manteve vários anos uma presença constante em revistas portuguesas ligadas à história, através de resenhas e outros assuntos. Escrevia, muitas vezes, num tom nem sempre politicamente conveniente. Para ele, tirando Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, é falso que o colonialismo português tenha durado 500 anos.
“Como falar de ‘cinco séculos’ em que o colonizador não aparece, senão na viragem do século XIX para o XX? Para destruir este mito que tanto mal fez a Portugal, nada melhor do que o estudo da sua história militar colonial desde 1800. É uma evidência que para haver colonização é preciso haver colonos”, disse numa entrevista ao Diário de Notícias.
No caso de Angola, acrescentou na mesma ocasião, “as estatísticas oficiais, apesar de frágeis, mostram que a esmagadora maioria dos colonos estavam concentrados em Luanda. Mesmo em 1900 - admitamos que havia dez mil europeus -, o povoamento branco era minúsculo. Durante décadas crescerá muito lentamente. Penso mesmo que, em 1900, metade dos futuros angolanos, no mínimo, nunca tinha visto um único branco. Sei que a África portuguesa nunca foi o Jardim do Éden, mas foi pior nas outras colónias tropicais europeias. A diferença é que as suas metrópoles nunca reivindicaram nem cinco, nem quatro, nem três (à excepção da África do Sul) séculos de colonização”.
Salazar e as colónias
Herdeiro dessa ideia, António de Oliveira Salazar e o seu regime, segundo Pélissier, trataram de dar seguimento à mitologia criada em torno de Portugal e as colónias, numa altura em que o esmagamento da resistência à presença lusitana na Guiné, Angola e Moçambique tinha sido realizado através de acções de autênticas conquistas territoriais.
“Salazar trouxe continuidade na gestão governamental e evitou a perda de parte ou de todo o seu império para os aliados. Mas, prisioneiro do mito da unicidade do caso português, esclerosou-se, acreditando poder escapar, só, ao desaparecimento dos impérios ultramarinos, mais ricos e desenvolvidos do que o seu. Vítima do mito dos cinco séculos, não quis ver as realidades e preparar o futuro. A sua obstinação transformou-se em pesadelo para a maioria dos portugueses, de 1961 a 1975. E bem depois”, com consequências também para as populações dos países descolonizados, da forma em que essa descolonização aconteceu.
Neste sentido, para Pélissier, o fim do colonialismo acabou, igualmente, por curar os portugueses da “doença” de que tinham uma missão histórica para cumprir no mundo. “Desde 1974-75”, com a perda das colónias, “parece que o português médio retomou confiança no seu futuro europeu”.
Vasta obra
Em Portugal, estão disponíveis uma dúzia dos seus livros, que se debruçam sobre a história de Angola, Moçambique, Guiné. Os seus livros mais recentes publicados em Portugal são “Portugueses e espanhóis na Oceania”, de 2018, e “Angola e Moçambique no crepúsculo do império”, de 2022. Há também uma história de Angola em formato de bolso, escrita em parceria com Douglas L Weeler.
Para a Encyclopaedia Universalis, de 2017, Pélissier escreveu o verbete relativo a Cabo Verde onde se pode ler: “Cabo Verde combina as dificuldades da zona do Sahel, o isolamento, a dispersão insular e a pobreza da sua antiga metrópole. Nestas condições precárias, a emigração em massa tem sido há muito tempo um paliativo. Após a independência (1975), os seus líderes aplicaram uma política ditada pelas realidades de uma geografia de privação. Desde 1991, ano em que também foi estabelecido o sistema multipartidário, Cabo Verde superou as desvantagens desta geografia fazendo escolhas económicas que agora estão a dar frutos”.