Memórias de um adolescente de 13 anos
O 25 de Abril de 1974, o dia em que Portugal os militares tomaram o poder, passou quase que despercebido aqui, na cidade da Praia, capital desta então província ultramarina portuguesa, Cabo Verde.
Não se registou qualquer reacção dos adultos, de dirigentes e quadros administrativos que exerciam funções no Funcionalismo Público e nem de pessoas politicamente mais esclarecidas. Isso sem falar de um adolescente de 13 anos, como eu, na altura, que muitas vezes ouvia, mesmo sem querer, os mais graúdos a apelidarem de terroristas os que combatiam nas matas da Guiné e que eram liderados por um certo... Amílcar Cabral.
Já, um ano antes, a notícia do assassinato desse mesmo senhor, Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro, correu neste nosso burgo com uma certa celeridade. Até um adolescente, como eu, se apercebeu que algo de anormal se tinha passado naquela data. No caso do golpe de Estado de 25 de Abril, que destronou o regime de Salazar, a notícia tardou a chegar e a ser disseminada, pelo menos no seio da população do Platô.
Lembro-me, no entanto, de, nesse dia, 25 de Abril (uma quinta-feira, como hoje), ter ido no final da tarde à Farmácia do Leão, que tinha o meu pai, Celestino Almeida, como gerente, uma prática diária para ir buscar, como fazia diariamente, uns trocados (25 centavos) para comprar rebuçados e outras guloseimas na Praça Alexandre, mesmo defronte à farmácia. Por 25 centavos eu tinha o mundo dos doces ao meu dispor.
Pela sua centralidade, na farmácia, o meu pai recebia vários amigos no final da tarde para conversas sobre assuntos do dia a dia, enquanto nós, seus filhos, íamos brincando com outras crianças na praça. Nesse rol de gente graúda havia antigos presos políticos e quase sempre aparecia, de repente, um conhecido “informador” da Pide, o Saraiva, que foi meu professor de trabalhos manuais no Liceu Adriano Moreira. E quando ele aparecia todos se punham de atalaia e só quando se ele se ia embora a conversa voltava a ganhar ânimo.
Contudo, com os meus 13 anos, percebi que alguma coisa de estranho se estava a passar no fim daquela tarde de quinta-feira, 25 de Abril. O semblante de alguns dos amigos do meu pai era carregado, enquanto se notava alguma descontração noutros. Lembro-me que tentavam insistentemente sintonizar a então Emissora Nacional (rádio oficial de Portugal, na altura), mas sem sucesso. Aquilo era em ondas curtas e acertar com as ondas exigia paciência e delicadeza nos dedos. Além de exigir muita paciência, aquilo era mais barulho do que outra coisa, por isso, eu como menino, não entendia a razão do esforço.
O certo é que perante alguma indefinição, recordo-me de um funcionário administrativo, vestido de branco, afirmar: “Na actual conjuntura todo o cuidado é pouco”. Não entendi o que era aquilo da “actual conjuntura”, mas a frase ficou-me na memória. Também eu, na minha vida, recorri-me a ela: “Na actual conjuntura... todo o cuidado é pouco”. Aliás, por alguma razão os políticos estão sempre a referir-se à “conjuntura”...
No dia seguinte o quadro parecia ter mudado ligeiramente, apesar de haver ainda alguma ambiguidade sobre o golpe militar em Lisboa e as suas consequências... No período da tarde, começaram algumas movimentações dando sinal de que em Lisboa o regime de Salazar tinha caído e que uma revolução estava em curso em Portugal.
Com a chegada às claras da notícia, na tarde do dia 26 de Abril, a anarquia chegou também. Várias pessoas foram perseguidas e espancadas por alegadamente terem sido informadores da Pide, com destaque para o professor Saraiva, que era casado com uma cabo-verdiana e que viu a sua viatura a ser queimada. Também um Volkswagen, da Pide, foi atirado pela encosta que dava acesso à Praia Negra e depois queimada. Tudo como nos filmes. Com os jovens aos pulos, de tão contentes.
Os ânimos estavam mesmo exaltados e não havia quem pudesse pôr cobro à tanta incivilidade. As coisas começaram a acalmar quando, no dia 27, o jornal Arquipélago, através de um suplemento, fez eco do golpe de Estado publicando uma mensagem da Junta de Salvação Nacional e o programa do Movimento das Forças Armadas. As autoridades apelaram também, através da Rádio, para os cuidados a ter com o lançamento de certos boatos, visando certos cidadãos, principalmente. Pouco a pouco, fui aprendendo também que “o boato é inimigo do povo”, principalmente daqueles que têm contas a acertar com o Povo.
Por via das dúvidas, a partir daquele momento, começou a haver debandada de gente ligada ao salazarismo, entre os quais professores, que acabaram por comprometer o ano lectivo, o que obrigou a uma passagem administrativa de todos os alunos. Dizem que por causa disso o ensino em Cabo Verde nunca mais foi o mesmo. Mas isso, como aprendi também, são bocas da reacção.
No dia 30 de Abril começou-se a ouvir “viva PAIGC” e algumas paredes começaram a ser pichadas com palavras de ordem do partido estrela negra e de Amílcar Cabral. A Rua Sá da Bandeira, onde eu residia, era o centro das manifestações protagonizadas, essencialmente, por jovens que residiam na Ponta Belém e no bloco de casas sociais onde hoje se situa o Quintal da Música.
Mas, para mim, o momento alto daquela semana atípica, foi o dia 1 de Maio, com a libertação dos presos políticos da Colónia Penal do Tarrafal. Por volta das 15 horas um longo cortejo, chegava à Rua Sá da Bandeira, tendo como ponto de chegada a Praça Alexandre Albuquerque, apinhada de gente, como nunca vi.
Os presos políticos, que acabavam de ser libertados, subiram a coreto da Praça, que estava apinhado de jovens sedentos de ouvir novidades sobre o futuro. Lembro-me da imagem de Pedro Martins que, num discurso empolgante, afirmou: “Cabral ka mori”. Na minha adolescência esta frase intrigou-me, porque um ano atrás eu tinha ouvido o contrário; contudo, dias depois, consegui interpretá-la, porque naquele tempo aprendia-se rapidamente. Por via das dúvidas, ainda hoje, volta e meia, aparece alguém a lembrar-nos que “Cabral ka mori”.
A partir de 1 de Maio as coisas começaram a entrar numa certa “normalidade”, com as autoridades coloniais ainda estacionadas no arquipélago a procurarem impor uma certa ordem... Se nos
primeiros dias não se falava muito a abertamente sobre o PAIGC, porquanto, por aquilo que ouvi na altura, até as células do partido em Cabo Verde foram apanhadas de surpresa com a notícia do golpe em Portugal, mal o quadro se clarificou, o que mais passou a haver foi revolucionários pró PAIGC para todos os tipos e gostos. Aprendi que uns eram cabralistas, outros maoistas e trostquistas. Era só escolher.
Com muitas outras peripécias pelo meio, comícios, festas, diatribes, demonização de uns e outros, o 25 de Abril e o 1 de Maio “terminaram” em Dezembro, com a instalação do Governo de Transição. O PAIGC tinha conseguido levar o melhor sobre os seus adversários, com vários deles metidos na Prisão do Tarrafal. O novo poder, saído das negociações entre Lisboa e o partido da estrela negra, tinha seis meses para conduzir Cabo Verde à independência. Mas isso poderá ser história para uma outra crónica.