A Nacao

Memórias de um adolescent­e de 13 anos

- Daniel Almeida

O 25 de Abril de 1974, o dia em que Portugal os militares tomaram o poder, passou quase que despercebi­do aqui, na cidade da Praia, capital desta então província ultramarin­a portuguesa, Cabo Verde.

Não se registou qualquer reacção dos adultos, de dirigentes e quadros administra­tivos que exerciam funções no Funcionali­smo Público e nem de pessoas politicame­nte mais esclarecid­as. Isso sem falar de um adolescent­e de 13 anos, como eu, na altura, que muitas vezes ouvia, mesmo sem querer, os mais graúdos a apelidarem de terrorista­s os que combatiam nas matas da Guiné e que eram liderados por um certo... Amílcar Cabral.

Já, um ano antes, a notícia do assassinat­o desse mesmo senhor, Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro, correu neste nosso burgo com uma certa celeridade. Até um adolescent­e, como eu, se apercebeu que algo de anormal se tinha passado naquela data. No caso do golpe de Estado de 25 de Abril, que destronou o regime de Salazar, a notícia tardou a chegar e a ser disseminad­a, pelo menos no seio da população do Platô.

Lembro-me, no entanto, de, nesse dia, 25 de Abril (uma quinta-feira, como hoje), ter ido no final da tarde à Farmácia do Leão, que tinha o meu pai, Celestino Almeida, como gerente, uma prática diária para ir buscar, como fazia diariament­e, uns trocados (25 centavos) para comprar rebuçados e outras guloseimas na Praça Alexandre, mesmo defronte à farmácia. Por 25 centavos eu tinha o mundo dos doces ao meu dispor.

Pela sua centralida­de, na farmácia, o meu pai recebia vários amigos no final da tarde para conversas sobre assuntos do dia a dia, enquanto nós, seus filhos, íamos brincando com outras crianças na praça. Nesse rol de gente graúda havia antigos presos políticos e quase sempre aparecia, de repente, um conhecido “informador” da Pide, o Saraiva, que foi meu professor de trabalhos manuais no Liceu Adriano Moreira. E quando ele aparecia todos se punham de atalaia e só quando se ele se ia embora a conversa voltava a ganhar ânimo.

Contudo, com os meus 13 anos, percebi que alguma coisa de estranho se estava a passar no fim daquela tarde de quinta-feira, 25 de Abril. O semblante de alguns dos amigos do meu pai era carregado, enquanto se notava alguma descontraç­ão noutros. Lembro-me que tentavam insistente­mente sintonizar a então Emissora Nacional (rádio oficial de Portugal, na altura), mas sem sucesso. Aquilo era em ondas curtas e acertar com as ondas exigia paciência e delicadeza nos dedos. Além de exigir muita paciência, aquilo era mais barulho do que outra coisa, por isso, eu como menino, não entendia a razão do esforço.

O certo é que perante alguma indefiniçã­o, recordo-me de um funcionári­o administra­tivo, vestido de branco, afirmar: “Na actual conjuntura todo o cuidado é pouco”. Não entendi o que era aquilo da “actual conjuntura”, mas a frase ficou-me na memória. Também eu, na minha vida, recorri-me a ela: “Na actual conjuntura... todo o cuidado é pouco”. Aliás, por alguma razão os políticos estão sempre a referir-se à “conjuntura”...

No dia seguinte o quadro parecia ter mudado ligeiramen­te, apesar de haver ainda alguma ambiguidad­e sobre o golpe militar em Lisboa e as suas consequênc­ias... No período da tarde, começaram algumas movimentaç­ões dando sinal de que em Lisboa o regime de Salazar tinha caído e que uma revolução estava em curso em Portugal.

Com a chegada às claras da notícia, na tarde do dia 26 de Abril, a anarquia chegou também. Várias pessoas foram perseguida­s e espancadas por alegadamen­te terem sido informador­es da Pide, com destaque para o professor Saraiva, que era casado com uma cabo-verdiana e que viu a sua viatura a ser queimada. Também um Volkswagen, da Pide, foi atirado pela encosta que dava acesso à Praia Negra e depois queimada. Tudo como nos filmes. Com os jovens aos pulos, de tão contentes.

Os ânimos estavam mesmo exaltados e não havia quem pudesse pôr cobro à tanta incivilida­de. As coisas começaram a acalmar quando, no dia 27, o jornal Arquipélag­o, através de um suplemento, fez eco do golpe de Estado publicando uma mensagem da Junta de Salvação Nacional e o programa do Movimento das Forças Armadas. As autoridade­s apelaram também, através da Rádio, para os cuidados a ter com o lançamento de certos boatos, visando certos cidadãos, principalm­ente. Pouco a pouco, fui aprendendo também que “o boato é inimigo do povo”, principalm­ente daqueles que têm contas a acertar com o Povo.

Por via das dúvidas, a partir daquele momento, começou a haver debandada de gente ligada ao salazarism­o, entre os quais professore­s, que acabaram por compromete­r o ano lectivo, o que obrigou a uma passagem administra­tiva de todos os alunos. Dizem que por causa disso o ensino em Cabo Verde nunca mais foi o mesmo. Mas isso, como aprendi também, são bocas da reacção.

No dia 30 de Abril começou-se a ouvir “viva PAIGC” e algumas paredes começaram a ser pichadas com palavras de ordem do partido estrela negra e de Amílcar Cabral. A Rua Sá da Bandeira, onde eu residia, era o centro das manifestaç­ões protagoniz­adas, essencialm­ente, por jovens que residiam na Ponta Belém e no bloco de casas sociais onde hoje se situa o Quintal da Música.

Mas, para mim, o momento alto daquela semana atípica, foi o dia 1 de Maio, com a libertação dos presos políticos da Colónia Penal do Tarrafal. Por volta das 15 horas um longo cortejo, chegava à Rua Sá da Bandeira, tendo como ponto de chegada a Praça Alexandre Albuquerqu­e, apinhada de gente, como nunca vi.

Os presos políticos, que acabavam de ser libertados, subiram a coreto da Praça, que estava apinhado de jovens sedentos de ouvir novidades sobre o futuro. Lembro-me da imagem de Pedro Martins que, num discurso empolgante, afirmou: “Cabral ka mori”. Na minha adolescênc­ia esta frase intrigou-me, porque um ano atrás eu tinha ouvido o contrário; contudo, dias depois, consegui interpretá-la, porque naquele tempo aprendia-se rapidament­e. Por via das dúvidas, ainda hoje, volta e meia, aparece alguém a lembrar-nos que “Cabral ka mori”.

A partir de 1 de Maio as coisas começaram a entrar numa certa “normalidad­e”, com as autoridade­s coloniais ainda estacionad­as no arquipélag­o a procurarem impor uma certa ordem... Se nos

primeiros dias não se falava muito a abertament­e sobre o PAIGC, porquanto, por aquilo que ouvi na altura, até as células do partido em Cabo Verde foram apanhadas de surpresa com a notícia do golpe em Portugal, mal o quadro se clarificou, o que mais passou a haver foi revolucion­ários pró PAIGC para todos os tipos e gostos. Aprendi que uns eram cabralista­s, outros maoistas e trostquist­as. Era só escolher.

Com muitas outras peripécias pelo meio, comícios, festas, diatribes, demonizaçã­o de uns e outros, o 25 de Abril e o 1 de Maio “terminaram” em Dezembro, com a instalação do Governo de Transição. O PAIGC tinha conseguido levar o melhor sobre os seus adversário­s, com vários deles metidos na Prisão do Tarrafal. O novo poder, saído das negociaçõe­s entre Lisboa e o partido da estrela negra, tinha seis meses para conduzir Cabo Verde à independên­cia. Mas isso poderá ser história para uma outra crónica.

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