Relatos em crioulo de uma madrugada há muito esperada
Há 50 anos, numa quinta-feira de Abril, o movimento dos capitães rumava a Lisboa para pôr fim a uma guerra colonial, que já durava há 13 anos. A Revolução dos Cravos acabava também com um regime ditatorial herdado do Estado Novo de Salazar e mantido, a custo, por Marcello Caetano (19681974). Mas o momento também foi vivido por populares e por jovens militares cabo-verdianos, alguns com participação directa nos acontecimentos deste dia histórico.
Anos antes da Revolução dos Cravos, milhares de homens e mulheres de Cabo Verde já estavam instalados em Portugal, alguns com as suas famílias. A Metrópole, como então se dizia, precisava de trabalhadores para as exigências do crescimento da malha urbana em volta da capital, Lisboa, numa altura em que mão de obra local preferia procurar a emigração, em França, Suíça e Alemanha, fugindo ao mesmo tempo da Guerra do Ultramar, que há 13 anos ceifava vidas na Guiné, Angola e Moçambique.
Cabo-verdianos na Lisboa de 1970
Com a construção civil em alta, na Metrópole, novos bairros eram traçados à régua e esquadro e Lisboa expandia-se para Norte. A Margem Sul acompanhava em força este crescimento. Os cabo-verdianos tornaram-se serventes, pedreiros, carpinteiros e motoristas. As equipas que levantavam paredes e faziam surgir novos bairros dos concelhos de Lisboa, Loures, Oeiras, Cascais, Almada, Seixal, eram cada vez mais reforçadas por contingentes das ilhas. Por seu lado, estes construíam bairros clandestinos dos dois lados das margens do Tejo, dando lugar a uma Lisboa africana jamais vista.
Surgiram então bairros de lata e madeira, como a Pedreira dos Húngaros e Alto de Santa Catarina, no concelho de Oeiras, e mais tarde a Cova da Moura e o 6 de Maio, na Amadora. Em Almada, os contingentes cabo-verdianos entraram para a Siderurgia Nacional e para a Lisnave, na reparação naval, na época um dos maiores estaleiros navais da Europa.
Famílias cabo-verdianas
de embarcadiços, sobretudo na Holanda, instalaram-se no bairro de São Bento (com uma tradição antiga em os receber, desde os tempos de B. Leza, nos anos 40), Campo de Ourique, Benfica, Avenida Almirante Reis, e na Margem Sul, em Almada, Barreiro, Casquilhos, Lavradio, Baixa da Banheira. A cidade de Sines, na Costa Alentejana, também viu chegar os primeiros pescadores, em especial oriundos da ilha de São Nicolau. O mesmo aconteceu com a cidade de Loulé, os primeiros trabalhadores da construção civil, para um Algarve em franca febre de construção de hotéis e apartamentos.
Quem emigrava para Portugal, dificilmente pensava em retornar tão cedo, muito menos de férias. Os primeiros voos Lisboa-Sal tinham preços proibitivos e a prioridade era economizar para enviar mensalmente a quantia necessária para suportar filhos e pais, deixados para trás. Mesmo as passagens de barco eram mais para funcionários da administração, nas célebres férias graciosas, ou embarcadiços que regressavam de férias, em especial no período natalício e para dois, três meses com a família.
Ponto de passagem, presença tímida
Era fácil encontrá-los pelas pensões do centro da cidade, onde aguardavam o dia do embarque: Pensão Estrela, junto à Praça do Areeiro, Pensão Dona Jô, na Avenida D. Carlos I, Pensão Dona Maria e Pensão Prazeres,
na Calçada da Estrela. Mas, subindo esta Calçada era possível dar com algum estudante, alojado em casa de familiares, tomando uma bica no célebre Café Gigante ou no Café Canas, em Campo de Ourique.
Nos anos que antecedem o 25 de Abril de 1974, alguns destes estudantes e outros jovens então já empregados em Lisboa, também conviviam na Casa de Cabo Verde. Esta fora fundada no final dos anos sessenta por Rui Machado, Lucas da Cruz e Manuel Chantre, também antigos estudantes, para o convívio dos naturais das ilhas. Tinha, igualmente, uma preocupação social, tratando de ajudava melhorar as condições dos que chegavam à então metrópole, ou para estudar ou para trabalhar.
Apesar de ser uma realidade, a presença de homens e mulheres cabo-verdianas em Lisboa, no período que antecede o 25 de Abril, é ainda tímida. Mal saindo da zona de conforto dos seus bairros, para o convívio com a população portuguesa, o que, diga-se, não mudou muito, nestes 50 anos.
O segmento da população menos escolarizado ainda se divide entre trabalhadores da construção civil, operários fabris, e empregadas domésticas e de limpeza. Mas, por outro lado, já são alguns os membros desta comunidade que entram para a função pública, para as Câmaras Municipais, alguns licenciados, que exercem as suas profissões, lado a lado com portugueses.