Entre o gesto e a palavra, Cabo Verde e Portugal*
‘Deu-nos Abril o Gesto e a Palavra’, frase de Maria Teresa Horta, o tema desta mesa, leva-nos a uma longa reflexão. Venho de uma família de emigrantes, que chegou a Lisboa no final dos anos sessenta, inícios de setenta. Sou filho de pai português, como vários cabo-verdianos e cabo-verdianas, e portanto, sempre tive um pé nas ilhas e outro neste velho continente. Aquilo que tem sido objecto dos meus livros, quer romances, quer relatos de viagens, é precisamente esse encontro de culturas.
Neste caso, entre Cabo Verde, na sua dimensão de nação feita de diásporas, e de Portugal, na sua herança colonial, seu tecido social pós-colonial. Assim como na forma como lida com este fenómeno nas gentes novas que chegam, das gentes que ele próprio ajudou a criar, como é o nosso caso, cabo-verdianos.
E aqui, há que atentar a essa pretensão histórica de que Portugal, apesar das independências das suas ex-colónias, ainda tem alguma responsabilidade histórica e deve, por isso, receber e aconchegar estes filhos do antigo império. Deve dar-lhes emprego, alimentá-los. Muitas vezes, como o filho bastardo que regressa à casa do pai pela porta das traseiras, da cozinha, e que aos poucos vai ocupando os quartos mais próximos, até se instalar confortavelmente também na sala.
Gosto de saber e de pensar que os africanos sempre estiveram na Europa, ao contrário do que muitos pensam - sobretudo em Portugal, desde o século XV. Que sempre fizeram parte da paisagem urbana e rural, tal como nos mostram pinturas e azulejos, que chegaram até nós. Gosto de ver essas imagens que contrariam a ideia de uma Europa branca e pura.
Gosto de saber que graças à inexistência de leis segregadoras, tal como nos Estados Unidos, homens e mulheres que chegaram a Portugal, como gente escravizada, vinda de África, foram-se diluindo, ao longo do tempo, no resto da população portuguesa, branca.
Nesse século XVI da Lisboa do comércio e das viagens, os africanos chegaram a constituir 10 por cento da população da cidade. O que dá para imaginar como seria se fossem obrigados a procriar apenas entre si, como aconteceu nos Estados Unidos e na África do Sul. Nos tempos modernos, teríamos em Lisboa bairros só de negros, como o Harlem, em Nova Iorque, ou o Bronx.
Ainda bem que tal nunca passou pela cabeça dos reis e dos legisladores deste país. E assim, vós que me escutais nesta sala, tendes nas vossas veias sangue dos nossos ruidosos e animados irmãos africanos. Tal como nós, mestiços cabo-verdianos. O que só nos valoriza.
E se pensarmos na viagem que esses homens e mulheres, agrilhoados nos porões de navios negreiros, tiveram que enfrentar, para Cabo Verde, Portugal ou Brasil; pensarmos nas condições horríveis e na maior parte das vezes fatais que tiveram a cada dia de viagem, diremos que aqueles que sobreviveram são os verdadeiros super-homens e mulheres. Sobreviventes da maior provação imposta a um ser humano.
Por isso, viver e circular entre duas culturas, embora uma filha da outra e daí a incontornável proximidade e familiaridade – apesar das óbvias diferenças - dá-nos uma perspectiva particular de cada uma delas. Sobretudo quando aquilo escrevemos versa sobre estas duas realidades: ver Cabo Verde com a minha parte intelectual portuguesa, e ver Portugal com os meus olhos e o coração das ilhas. Olhares com a devida distância, que nos dão amplo espaço de reflexão e para o sentimento.
Por isso, recupero as memórias dessa manhã especial, quando as minhas irmãs e os vizinhos tiveram de voltar para trás, depois de saírem para trabalhar, e os tanques, camiões, soldados e população pelas ruas da cidade impediam qualquer um de avançar. E no ano seguinte, lá estava eu de punho erguido, com doze anos, juntando-me às muitas manifestações que se faziam todas as semanas.
A coluna compacta seguia pelas ruas do bairro, subindo e descendo, gritando palavras contra o Fascismo e a Ditadura. E eu julgando que aquilo era um ensaio para depois invadirmos as ruas e as praças principais de Lisboa. O que nunca veio a acontecer.
Nunca percebi porque é que o 25 de Abril não é também celebrado na Praia, em Luanda, em Bissau, Maputo e São Tomé. Razões haverá para não ser, naturalmente. E se pensarmos bem, a data histórica, em Portugal, é sinónimo de Liberdade. É a primeira palavra associada ao 25 de Abril de 1974. Na África lusófona, não será a liberdade, da mesma maneira como os portugueses a sentem. O 25 de Abril trouxe as independências das ex-colónias, muito antes da liberdade.
É um facto. Para a maior parte destas populações, a liberdade só chegaria 15 anos depois. Portanto, ao contrário de Portugal, o 25 de Abril não deu aos africanos o gesto e a palavra, de que falava Maria Teresa Horta. Deu as independências. Mas deu-as sem a liberdade. A liberdade das pessoas, a liberdade do ser e viver. A palavra, menos espontânea e mais comedida, nem sempre acompanha o gesto.
Mas, em Cabo Verde, após 15 anos de um regime de partido único, o país vive uma democracia na juventude dos seus 33 anos. Hoje temos o gesto e a palavra. O que, contudo, não nos livra de muitos atropelos ao equilíbrio democrático entre instituições e entre cidadão e as instituições.
É uma democracia em construção já com provas de solidez dadas. Recordo, a título de exemplo, quando, em 2001, o dirigente histórico, o Comandante Pedro Pires, foi eleito Presidente da República por uns escassos 12 votos. Na altura houve quem dissesse que teriam sido os 12 Apóstolos de Cristo que vieram às ilhas votar.
Mas, após uma investigação, concluiu-se de que tinha havido fraude nessa urna. No entanto, o presidente Pedro Pires cumpriu tranquilamente os seus dois mandatos, sem sobressaltos. Aliás, como todos os presidentes da República das Ilhas.
*Texto da minha intervenção no Festival Literário Correntes d’Escritas, Matosinhos, 24 de Fevereiro, 2024