“Há uma geração que não tem a noção vivida do que é a importância de ser livre”
Ana Cordeiro, professora e investigadora portuguesa, a residir há largos anos em Cabo Verde, viveu na primeira pessoa as marcas da opressão e do fascismo em Portugal. Ao A NAÇÃO recorda a “euforia” vivida há 50 anos no 25 de Abril. Hoje, não tem dúvidas de que os princípios da revolução foram cumpridos, mas mostra-se preocupada com o desconhecimento que os jovens parecem denotar da importância da liberdade de que hoje usufruem.
Licenciada em Filosofia pela Universidade de Coimbra e com mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes pela Universidade do Porto, Ana Cordeiro tinha, na altura 20 anos e estava precisamente em Coimbra, onde estudava e trabalhava, na universidade, ao mesmo tempo.
“Era suficientemente adulta para saber o que era viver em ditadura, tinha experiência suficiente para saber o que era lutar pela liberdade e de que forma a violência e a repressão se abatia sobre aqueles que se empenhavam nessa luta. Mas também era suficientemente jovem para acreditar que podíamos mudar o mundo”.
No célebre 25 de Abril, as memórias dos sentimentos e experiências vividas naquele dia perduram no tempo, mesmo passados 50 anos da revolução dos cravos.
“Primeiro, foi um momento de alguma ansiedade e, depois, quando se percebeu que era a sério, foi um momento de enorme alegria e euforia. Alguma ansiedade porque tinha tido, antes, aquele golpe falhado, portanto, mas quando se percebeu que, de facto, tinha mesmo funcionado e começava uma nova época, foi uma grande euforia, mais no dia 26, porque o dia 25 foi um dia em que estivemos agarrados à rádio, à televisão. Mas o dia seguinte, 26, foi já na rua a celebrar”.
Viver na primeira pessoa as marcas da opressão
Celebrar a liberdade tinha para esta portuguesa, há largos anos a viver em Cabo Verde, casada com um cabo-verdiano e mãe de dois filhos que se assumem como cabo-verdianos, um sabor especial, pois tinha sentido na pele tudo o que o fascismo representava.
“Era muito nova, mas tinha tido a experiência de ver a PIDE, quatro anos antes (tinha uns 16/17 anos) a entrar em minha casa de madrugada, fazer uma vistoria à casa toda, vasculhar tudo e levarem o meu irmão preso. E tinha, também, na família outras pessoas que já tinham sido presas pela PIDE, outras que eram com frequência interrogadas…”, recorda.
Sobrinha de Almeida Santos, Ana fazia parte de uma família que se assumia como republicana e antifascista. Chegou a visitar o irmão na sede da PIDE e ele tinha sido torturado. O confronto com essa realidade fez aumentar a consciência do que o 25 de Abril representava. “Foi uma coisa que foi vivida, a opressão foi vivida… E, por isso, é evidente que a liberdade também foi vida vivida com uma enorme alegria”.
Esta luta pela liberdade, pelos direitos civis, individuais, democráticos, etc., foi tecida minuciosamente e exigia cuidados que faziam parte do dia a dia, daqueles que estavam contra o regime no ambiente extremamente politizado de Coimbra. “As conversas ao telefone eram sempre muito cuidadas e, depois, ouvia-se aqueles barulhos na linha e pensava-se que estávamos a ser ouvidos. Portanto, era uma sensação perma
nente de opressão”, contextualiza.
Um sabor diferente
Vivências que fizeram com que o seu 25 de Abril tivesse um sabor diferente. “Naquela idade, queríamos tudo ‘para agora’! Eu sou do tempo em que se gritava ‘nem mais um soldado para as colónias’, ‘Independência já’. Portanto, foram momentos, de facto, de muita luta, de ocupação de, por exemplo, da Casa de Estudantes das Colónias, em Lisboa.
“Em Coimbra não havia casa, era uma delegação, mas havia outars ocupações, a luta permanente, as reuniões, as discussões fizeram parte da nossa vida durante meses. Eu acho que nós, a partir de certa altura, todos os dias nos reunimos para grandes discussões e depois havia grandes diferenças ideológicas, isso dava de facto, discussões infindáveis pela noite dentro… mas é esse momento de alegria, de exaltação!”
50 anos depois, ameaça do radicalismo ideológico
Passados 50 anos, questionada se os princípios que levaram à conquista do 25 de Abril foram cumpridos, Ana Cordeiro não tem dúvidas que sim, mas alerta para uma espécie de aceitação ou resignação das coisas por parte das gerações mais novas que desconhece o que esteve e está em causa com o 25 de Abril.
“Há uma geração que não tem a noção vivida do que é a importância de ser livre, por isso é que eu acho que neste momento se aceita com alguma naturalidade, por exemplo, a censura de livros, de palavras, de opiniões por uma geração que, de facto, não viveu esses momentos de repressão. E o que se vai perdendo com o tempo é essa importância viva das coisas. Os jovens vivem em liberdade, eles não sabem muito bem o que é viver num momento diferente e, portanto, não valorizam como nós, que já somos velhos, o que foi essa mudança”.
O facto de essa geração não ter essa memória e não ter passado, por isso, pode os tornar mais facilmente manipuláveis. “Quando nós agora olhamos para o mundo em que vivemos, em que por um lado temos a direita a subir e a dizer aquilo que esteve calado durante muito tempo, e temos, por outro lado, alguma forma censória de ver a realidade, também a instalar-se e sem que as pessoas se preocupem com isso, eu acho que isso revela essa fragilidade dos jovens. Porque como são coisas que vão sendo feitas a pouco e pouco, é difícil, até mesmo para nós, mais velhos, percebermos se isso são modas momentâneas, se são de facto, momentos de viragem na nossa vida e na nossa vida em democracia e é isso que é preciso, de facto ter atenção”.
Discursos anti 25 de Abril preocupam
Olhando para os sinais da sociedade portuguesa, evidenciados na ascensão da extrema-direita, a entrevistada do A NAÇÃO mostra-se preocupada com discursos anti 25 de Abril.
“Ouvirmos agora pessoas dizerem tranquilamente que são contra o 25 de Abril é algo que preocupa, porque, de alguma forma, estávamos convencidos que a aceitação de uma via democrática era quase que generalizada. E haver pessoas que continuam a sonhar com o regime autoritário, com carácter fascista, é uma coisa que me espanta até, mas a verdade é que isso está a acontecer por toda a Europa”.
A responsabilidade, desses avanços, em grande parte, como defende, também pertence à “esquerda socialista”, que governou a Europa e Portugal, durante muitos anos.
“Embora tendo que reconhecer que houve uma evolução positiva, em termos de qualidade de vida das pessoas, a verdade é que também a forma como se governa, a corrupção e os compadrios criaram na população um sentimento de rejeição dos políticos e de desconfiança em relação aos políticos, que a extrema-direita está a aproveitar para conseguir poder e, isso, é preocupante”.
Educação como arma de combate
A educação, garante a entrevistada do A NAÇÃO, é a melhor arma para contornos os problemas candentes na sociedade portuguesa, entre intolerância e racismo.
“Eu dou muita importância à educação e eu acho que grande parte dos problemas que vive a sociedade portuguesa, tanto em termos de termos de integração de imigrantes, como de desigualdades sociais, como até de falta de respeito pelas pessoas e pela opinião das pessoas, pode-se resolver com um trabalho contínuo na escola. Mas é um trabalho profundo, não é um discurso de momento. É um trabalho que nunca está concluído. As crianças têm que, desde pequenas, ser habituadas a viver em democracia e isso como é que se faz? Debatendo nas escolas, ensinando-as a ouvir os colegas, ouvir opiniões diferentes, respeitar essas opiniões e rebatê-las”.