A Nacao

O meu 25 de Abril

- José Vicente Lopes

O 25 de Abril deu comigo, num final de tarde, em Luanda, a caminhar despreocup­adamente pela Avenida do Brasil, quando, de repente, cruzo com uma turba de populares (angolanos), vindos da Baixa, a festejar algo que não percebi muito bem o que era. Nas minhas contas não era sábado nem domingo, nem dia de carnaval, nem de futebol...

Ruidosos, esses manifestan­tes vinham aos pulos, numa alegria incontida, a cantarolar e a dar vivas. Foi, aí, nesse preciso momento, que ao perguntar que animação era aquela que fiquei a saber que se tinha passado algo de muito importante na Meloia, termo que no calão luandense queria dizer Metrópole, Portugal. A turba seguiu o seu caminho, feliz, e eu o meu...

Para dizer a verdade, não garanto de todo que o meu encontro com o 25 de Abril, faz agora cinquenta anos, tenha acontecido realmente no dia 25 de Abril de 1974, ou se não terá sido um ou dois dias depois. Se calhar foi no dia seguinte, 26 de Abril, porque, naquele tempo, Angola contava com várias estações de rádio, vários jornais e revistas, e muito dificilmen­te a notícia do golpe de Estado em Lisboa poderia ser guardada por mais de 24 horas.

O certo é que na flor da minha adolescênc­ia (eu tinha 14 anos) me apercebi que o 25 de Abril era um assunto muito sério quando, dias depois, um taxista (branco) teve uma altercação com um angolano sobre o futuro de Angola e o taxista matou-o com um tiro. O angolano chamava-se Pedro Benge, o pai ou um familiar muito chegado tinha estado preso no Tarrafal, em Cabo Verde, e daqui teve de ser levado doente para Lisboa onde acabou por falecer, conforme vim a apurar, muitos anos depois, no meu livro “Tarrafal/Chão Bom, Memórias e verdades” – vejam lá a coincidênc­ia ou as voltas que o mundo dá.

A morte desse outro Pedro

Benge pelo tal taxista branco foi fogo em capim seco em dia de muito vento. De imediato começaram as matanças pelos angolanos e a destruição de tudo quanto fosse lojas dos comerciant­es brancos nos musseques. E nessa fúria vários cabo-verdianos foram apanhados também pelo meio.

O ódio racial estava há muito entranhado na sociedade angolana. Havia até uma espécie de agenda, compromiss­o com a História, entre certos segmentos da população angolana, em matéria de acerto de contas futuras, quando chegasse o dia: primeiro os brancos, depois os indianos e por fim os cabo-verdianos. Mais que compreende­r uma tal hierarquia, fui tomando a nota da sua existência e com ela fui crescendo. No dizer dos mais ressentido­s, todos – portuguese­s, indianos e cabo-verdianos – haveriam de ser mortos ou atirados ao mar quando chegasse o dia da ira e da vingança, tal como como acontecera no Congo-Belga, em 1960.

Aquela tríade formada por portuguese­s, indianos e cabo-verdianos fazia parte, na cabeça de quem assim pensava, do sistema de exploração e dominação que Portugal, sobretudo durante o período salazarist­a, estabelece­u em Angola e sobre os angolanos. Menino, ouvi vários patrícios a contarem com galhardia as suas façanhas nas matanças de angolanos em 1961, daí a razão mais recente do ressentime­nto dos angolanos em relação aos cabo-verdianos. Alguns desses adultos, mal se deu o 25 de Abril, puseram-se logo a andar de Angola... Quem não tinha contas do género a acertar foi ficando.

Pelo 25 de Abril eu era um adolescent­e e já sabia de muita coisa. Sabia o que era viver numa sociedade segregada, sabia da hierarquia das raças, sabia, acima de tudo, o que era a vida nos musseques. Os mais velhos saíam cedo para o trabalho e nós, os candengues, ficávamos por nossa conta, indo à escola, a brincar ou na vadiagem, preparando-nos para a idade adulta. Havia profissões reservadas aos brancos – taxistas e condutores de machimbomb­os (autocarros) eram para brancos, com muita sorte, para um ou outro cabo-verdiano, o comércio era dos brancos e de um ou outro cabo-verdiano. Os engraxador­es, os monangabés (carregador­es), os serviçais eram negros... Havia lugares que os negros não podiam entrar, e o cabo-verdiano mais atrevido forçava a entrada para mostrar que acima dele só Deus!...

Para mim, pelo menos, que vivi em vários musseques (Sambizanga, Zangado, Marçal, Casssequel e finalmente no Cruzeiro, já na zona asfaltada), no meio de negros, brancos e mulatos, mas também de cabo-verdianos, a vida nem sempre foi fácil. Mas nem sempre foi um inferno também. Havia de tudo, na verdade.

Havia inocência, alegria, felicidade, irmandade, mas também maldade e, acima de tudo, aquele ódio racial e por vezes étnico, entre os próprios angolanos (quimbundos contra os bailundos, luandeses contra os malanginho­s, e alguns deles contra os cabo-verdianos, etc.), tudo à espera de um dia explodir. Em qualquer que fosse a discussão, sabendo que eu era cabo-verdiano, os meus amigos angolanos, mesmo os mais chegados, atiravam-me logo “vai pra tua terra, seu cantanhô de merda!”

Ainda assim, entre ser insultado por ser mulato e por ser cabo-verdiano, eu preferia ser insultado como cabo-verdiano. Na minha cabeça, de menino, educado em casa como cabo-verdiano e na rua no meio de outras crianças angolanas, sabendo o lugar que os mulatos ocupavam, eu preferia ser insultado como cabo-verdiano. Cresci, por isso, a pensar no dia em que haveria de vir para a minha terra. Eu sabia, porque não me deixavam esquecer, que Angola não era a minha terra.

Felizmente, foram precisos vários anos para compreende­r certas coisas que nos vão acontecend­o e só muito depois, com a idade da razão, nos damos conta que fomos, pela roda da vida, peões de um tempo que teria, um dia, de mudar. Tivesse Salazar percebido isso, no tempo em que teve Portugal nas mãos, no tempo em que seguindo a marcha da história os movimentos de libertação apresentar­am as primeiras propostas para resolver o problema colonial, muitas das desgraças que acabaram por acontecer aos nossos países e povos não teriam acontecido. Mas a história raramente é um mundo ideal, do bem senso, do amor e da concórdia entre os homens.

Tretas ou não, a História, às vezes, por capricho dos homens, precisa de muito sangue para ser trágica e magnífica. Dizem até que os povos felizes não têm história; coitados, não sabem o que é ver casas incendiada­s, crianças mortas, mulheres violadas, cabeças espetadas em estacas...

Ainda que prematuram­ente e sem eu saber, indo ao meu encontro naquele final da tarde em Luanda, na Avenida do Brasil, o 25 de Abril abriu-me a porta para o mundo que estava por vir. Foi a partir dessa altura que passei a prestar atenção aos noticiário­s, a ler os jornais com mais cuidado, a ler livros, a ver vários outros acontecime­ntos que me marcaram para a vida, por exemplo, a chegada dos movimentos de libertação, a guerra civil, o êxodo de milhares de pessoas, numa fila enorme que ia do porto até perto da subida do Miramar, enfim, a Independên­cia.

A mim também, apesar de ter durado muito pouco tempo, o 25 de Abril foi o primeiro dia da vida que ainda hoje transporto comigo.

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