“50 anos depois, o Estado Democrático não conseguiu satisfazer as necessidades das pessoas”
Maurício de Carvalho, empresário português a residir em Cabo Verde há vários anos, foi desertor do exército colonial e exilado político na Bélgica, para onde fugiu em 1970. Hoje, olhando para trás, vê a ascensão da extrema direita como consequência da falta de formação cívica das pessoas e lamenta que a Comunicação Social tenha contribuído para a ascensão do Chega.
“Eu era responsável pela digitalização dos dossiers clínicos da aristocracia belga, no hospital que hoje tem o nome de Campus St. Raphael de Louvain. Ninguém podia entrar na sala, só eu é que digitalizava, e depois entregava ao meu diretor. Nesse dia, no dia 25 de Abril, quatro ou cinco amigos meus entraram aos berros na sala a dizer: ‘Há uma revolução em Portugal’. Pegaram-me e levaram-me à cantina. Foi assim que eu soube”, recorda.
Naquela altura era trabalhador estudante e repartia os encargos de digitalização com serviço de barman numa discoteca. “Deixei a engenharia aeronáutica, estava no último ano e fui para as ciências económicas, políticas e sociais. Aquilo era uma sociedade estranha, tinham acabado de sair do Maio de 68, foi no ano seguinte, em Louvain, na que se sentiu mais o movimento estudantil francês, portanto, era a crise da libertinagem total, uma grande movimentação política. E eu pensei: ‘Só há uma maneira de eu me organizar nesta sociedade, é integrar-me nela, e não mexer com os portugueses que cá estão’, e foi o que fiz durante pelo menos seis meses, vivi intensamente a Bélgica”.
Fase dos movimentos estudantis
Mauricio passou a fazer parte da direcção do Centro Internacional de Estudantes Estrangeiros da Universidade Católica de Louvain, vivendo em pleno tudo o que isso representava em termos políticos e sociais naquela altura.
“Eu lidava mais com um pequeno grupo de portugueses que frequentavam a associação, depois com marroquinos, argelinos, palestinianos, bascos, catalães, italianos, etc., o Centro Nacional de Estudantes Estrangeiros tinha 52 associações de estudantes. Esse foi o mundo em que eu participei e vivi. Na parte da língua portuguesa eu estava mais ligada aos cabo-verdianos. Eu sou conterrâneo na Bélgica de Humbertona, do Adão Rocha, do irmão dele, o
Naná, que já faleceu, portanto, há toda uma comunidade cabo-verdiana com a qual eu me liguei por causa dos movimentos de libertação”.
Na Bélgica, a luta contra o salazarismo que se vivia em Portugal, mantinha-se presente e ajudava sempre a causa, quando podia. “Eu tinha algum estatuto social, porque tinha o meu carro próprio, o meu apartamento próprio, etc., e tinha uma facilidade que era conhecer muito bem a Bélgica, saber muito bem por onde é que havia de entrar e por onde é que havia de sair, quando havia passagem de clandestinos e as organizações revolucionárias portuguesas pediam, normalmente, para lhes dar boleia. Eu trazia-os a Paris, sempre pela mesma rota, e não passava pela fronteira. E, depois ficava 3 horas na fronteira porque eu tinha passado e ia regressar sem nunca ter passado por lá”.
No Verão de 1974, foi a primeira vez a Portugal, depois do 25 de Abril, de férias. Porque o regresso, de vez, só no fim do curso e quando fosse seguro, porque ainda não havia amnistia para os desertores. “Portanto, eu só regressei a Portugal quando o Vasco Gonçalves (primeiro-ministro) fez um despacho a amnistiar os refugiados políticos e os desertores, pagando eles a taxa militar. Eu paguei a taxa e fiquei liberado, livre”.
As memórias de desertor
Mas, regressando atrás, foi por acidente de percurso, que Mauricio de Carvalho se transformou em desertor. “Durante o movimento estudantil (em Coimbra), eu apanhava boleia todos os dias com um director da polícia judiciária que era meu amigo pessoal, vivia na minha aldeia e que ia à noite para a polícia judiciária. Mas houve um inimigo comum que apresentou uma queixa à polícia política de que o senhor Inspetor da PJ, todos os dias, veiculava informação sigilosa para um dirigente estudantil. Ele foi chamado à PIDE e pôs os tipos da PIDE na ordem, na altura…”, conta.
Só que este episódio, juntamente com uma discussão “azeda” que já havia tido em Coimbra com o antigo ministro da Educação (1968/70), José Hermano Saraiva, quando era delegado de curso, na altura, acabaram por o tramar, quando pediu o adiamento da tropa, em que o seu dossiê foi rasurado.
“O director do Centro de Recrutamento de Coimbra chama-me à casa dele porque me conhecia, para me informar que eu tinha sido chamado para a tropa, e eu disse ‘ok’, eu já tinha na minha cabeça que não ia para a tropa. Portanto, percebi que ia fazer a recruta e a especialidade na frente de combate da Guiné, juntamente com assassinos, com todos aqueles que o Salazar odiava. E eu disse: ‘Não há outra maneira que não seja desertar’”. E assim foi parar à Bélgica, em 1970, como refugiado político, protegido pelas Nações Unidas.
Formação cívica, precisa-se
“O país evoluiu muito em alguns sectores, evoluiu muito na educação, evoluiu muito na saúde, evoluiu muito na qualidade de vida, evoluiu muito no emprego, evoluiu alguma coisa no desenvolvimento económico, mas, depois, houve sectores que não evoluíram. Tais como na formação cívica das pessoas”, aponta o entrevistado do A NAÇÃO.
Os media, critica, não têm contribuído para a melhor literacia cívica e educacional. “Quando tens um meio de comunicação de massas que passa telenovelas de manhã, até à noite, e reality shows e programas abaixo da condição, não podes ser um cidadão bem informado e com sentido de cidadania e, portanto, as pessoas acabam por alinhar em partidos políticos, em correntes de opinião que são completamente alheias à sua própria história”.
Estado democrático falhou
A ascensão da extrema direita, do ponto de vista do nosso entrevistado, mostra que o Estado democrático não consegui satisfazer as necessidades das pessoas. “Quando eu digo estado democrático, é aquela ala que tem desde a esquerda, desde o PSD e até os democratas cristãos do CDS, que é uma coisa que já não existe. Portanto, não conseguiram fazer, nunca conseguiram encontrar soluções para os problemas nacionais, resolveram alguns, não resolveram os outros”, analisa.
Entre esses problemas candentes, o da habitação. “O Souza Gomes em 1977/78 foi crucificado na praça pública porque queria fazer a revisão das rendas de casa, uma revisão de rendas de casa que tinha permitido reanimar completamente o sistema habitacional, a política habitacional, o mercado habitacional, onde as pessoas iam pagar mais renda, mas aquilo que os senhorios iam pagar de mais impostos, permitia pagar renda àqueles que não tinham dinheiro para pagar. Não fizeram nada disso e, portanto, andaram 50 anos a atiraram o barro à parede e, isso, hoje, é um grande problema nacional”.
Fascismo nunca morreu
O fascismo, lamenta Carvalho, não morreu em 1974 e abriu portas ao Chega de André Ventura. “Estavam todos de bandeirinha nacional a gritar vivas ao Salazar e, depois, vivas ao Marcello Caetano e ao Américo Tomás, num dia, e no dia seguinte viraram revolucionários, continuaram fascistas, continuam alguns neo-nazis, nunca deixaram de o ser, nem nunca deixaram de assumir que o eram. Agora, muitos encontraram uma forma de se exprimir e essa forma é o Chega”.
O Chega, como argumenta, acabou por ser apadrinhado pela comunicação social que lhe deu “força” e “prestígio”. “Quando passas meses a dizer que o Chega está num crescimento espectacular, o que é que esperas que aconteça? Cresce. É a história do Lobo Mau. Nunca ninguém se lembra que a avozinha é que enganou o lobo mau, é sempre o lobo mau que comeu a criancinha”.
Polémicas à parte, e mesmo apesar de todos os desafios sociais que Portugal enfrenta e a Europa também, Maurício de Carvalho não tem dúvidas de que a sociedade portuguesa vai ter que evoluir para que a democracia viva por mais 50 anos e o país se desenvolva. Isso passa por mudança de mentalidades.
“Nós não podemos passar a vida de mão estendida à União Europeia, ‘por favor, dê-nos cá dinheirinho para nós vivermos. Nós não queremos a exploração do lítio porque perturba uma toda uma Serrinha, onde os ecológicos nunca meteram os pés e nem sabem onde é que fica no mapa. Nós não queremos explorar os recursos energéticos que existem a 50 km da Costa Algarvia, porque os alemães quando estiverem ao sol podem ficar perturbados com a extração de petróleo’, nós fechamos uma mina onde havia ouro, que dá imenso trabalho e não era rentável há 20 anos, quando o ouro tinha um preço miserável a onça, mas, agora, a onça está a 2800 euros!”, finaliza, com ironia.