Descontruindo...O Construido ou construindo...O Descontruido À Isabel Castro Henriques (II)
Continuando o prazeroso passeio pela “Roteiro Histórico de uma Lisboa Africana: Séculos XV-XXI”, da Isabel Castro Henriques, vos trarei mais algumas passagens da obra.
Na conclusão do artigo anterior, tentara explicar o porquê deste passeio. Dissera que o estava fazendo na perspectiva de vir analisar o que poderia estar a acontecer nas nossas ilhas, no mesmo período.
Isto é, o papel do negro escravo-foro-liberto na nossa Ribeira Grande de Santiago. Esqueci de completar que era para procurar ajudar a clarificar a contribuição deste, negro, para a formatação da sociedade cabo-verdiana.
Dissera também que, em principio, não seria neste que ainda traria minhas conclusões.
Assim, permitam-me mais algumas citações da obra, para continuarmos o passeio pela Lisboa-Africana para verem como o africano-negro contribuiu para a Lisboa e o Portugal que foi construído desde o séc. XV, século que marcou o início da obra da Castro Henriques.
Só ligeiras correcções ao artigo anterior.
A obra de ICH não tem capítulos. Portanto, foi um erro ter falado em capítulos. O que a obra tem...é CIRCUITOS. CIRCUITOS repartidos em quatro “capítulos”: Circuito I: A Lisboa Ribeirinha: Poder, Comércio, Lazer; Circuito II: Lisboa das Colinas e dos Quotidianos Populares; Circuito III: O Bairro Mocambo, Invenção Luso-Africana; e Circuito IV: Da Lisboa Colonial à Lisboa da Liberdade.
Corrijo também. Os capítulos mais interessantes, para nossa analise, são o 2° e o 3°.
A capa da obra é ilustrativa. Mostra dois negros-“oitocentistas”. Um homem e uma mulher. O homem, um caiador; a mulher, uma vendedeira de tremoços (descrição na pg. 61).
A maneira de vestir...chamemo-la indumentária...é seguramente a mesma que os nossos patrícios usavam no mesmo período.
Para o nosso caso, essa cena já teria saído de nossa 1ª cidade-capital, pois, ela já estava decadente. Poderíamos tê-la visto já noutros espaços das ilhas.
Mas, continuemos o passeio pela Lisboa-Africana.
Voltemos ao CIRCUITO II.
Na pg. 33, Isabel escreve: “Ontem como hoje, o Rossio e o Largo de São Domingos são os lugares do encontro preferidos pelos africanos. A Praça da Figueira, ao lado, acolhia forasteiros que ai encontravam grandes feiras... [...] Entre as duas praças, mas ligado ao Rossio, o Largo e a Igreja de S. domingos foram os lugares onde homens e mulheres de África puderam encontrar, desde finais do séc. XV, (!!!, esta exclamação é minha) acolhimento e apoio que tornaram menos dura a sua integração na sociedade lisboeta. Inserida no Convento dominicano de S. Domingos, a igreja do mesmo nome abriu suas portas à primeira confraria de Nossa Senhora do Rosario dos Homens Pretos, que viria a transformar-se, em Portugal e no seu Império, num lugar de devoção e de protecção social de escravos e forros africanos”.
Esta longa transcrição leva-nos, outra vez, a nossa antiga cidade-capital, do séc. XV-XVI, a cidade de Santiago de Cabo Verde.
Relevemos dois aspectos: a vida social da cidade e o papel da igreja.
O Largo do Pelourinho onde se vendia e se comprava=comerciava, de tudo e onde se acotovelavam toda a casta de gente que na cidade vivia ou passava: vizinhos-moradores, senhores-possidentes e de varias profissões, negros-escravos-forros, negociantes-marinheiros-“estrangeiros” de varias procedências, etc. Tudo naquele reduzido espaço onde se edificou o pequeno burgo.
Seria interessante reconstituirmos, através da arqueologia, a verdadeira cidade e não aquela que temos hoje. Uma pequena escavação deu para perceber a grandiosidade da estrutura urbana dos tempos áureos da cidade que é, hoje, Cidade Velha. Pena neste artigo não ser possível colocar algumas imagens, para ilustrar. Farei isso num outro espaço.
Igualmente, este trecho nos traz um elemento importante da história da cidade, o aparecimento da confraria dos Homens Pretos e o papel da igreja, o lugar de devoção e de “protecção” de escravos e forros.
Quem decidiu pela edificação e quem construiu mesmo a nossa Igreja da Nossa Sra. do Rosário, a única existente e viva?
Certamente, a resposta seria os Homens Negros-forros da Cidade.
Voltaremos a esta parte da reflexão no próximo artigo.
Continuando a percorrer a Lisboa-Africana, analisando a Mouraria, Graça e Alfama, Isabel Castro Henriques escreve:
“Seguindo para oriente, em direcção à colina da Graça, cruzando a Mouraria e descendo para Alfama, encontram-se velhos bairros dos mouros medievais, hoje lugares privilegiados do fado, percorridos por caminhos labirínticos marcados pelas presenças seculares de africanos forros, que por ali viviam, por vezes em casa própria[...]” Pg. 39.
Trouxe esta passagem por um ponto importante: o fado (hoje zona privilegiada do fado) e a presença secular de africanos forros na zona.
O facto de a presença de africanos forros ser secular numa zona hoje privilegiada de fado deve levar-nos a refletir sobre a nossa morna e a sua origem.
Voltarei sobre esta passagem na minha analise futura da problemática.
Continuemos calcorreando a Lisboa-Africana, de ICH, colhendo elementos para minha analise conclusiva futura.
Referindo-se a participação negra no mundo religioso (procissões e outras) e festivo, Castro Henriques nos diz:
“Eram eventos sempre muito concorridos por africanos, membros ou não de confrarias” e CH da um exemplo concreto que foi uma importante festa do Rosario, ocorrido no ano 1730, na qual houvera: “aparato musical, peditórios e danças”, com a participação de “muitos africanos de origens diferentes, “de Angola”, “do Congo” e “da Mina””...cerimonia religiosa, também social e fortemente ligadas às diversas culturas e memorias de identidades longínquas”. Pg. 40
Da para entender que a Lisboa, dessa altura, já era uma cidade-cosmopolita com memorias e identidades longínquas, seguramente não só africanas.
Interessante o relato que Henriques faz da vivencia na zona do “Chafariz de Sant’Ana” e da Rua das Pretas que se localizava logo ai perto.
Castro escreve:
“A Rua das Pretas ali ao lado regista essa (das mulheres aguadeiras) presença secular, já que o lugar nunca deixou de ser utilizado como espaço de trocas e de negócios, e também de festas, as africanas forras usando suas casas como estalagens para os muitos forasteiros que por ali passavam”.
Pode-se imaginar o que os forasteiros iam fazer na zona...e sempre as festas pelo meio.
Concluindo
Pode-se perguntar...e como era a vida dos nossos antepassados...que constituíram sempre a maioria da população...na nossa cidade e seus arredores...nos nossos quilombos...nas nossas tabancas de “rabelados”!!??
Entre aspas:
Zézé di Nha Reinalda cantara no “Ambienti Selecto” que:
Negro ca ta perdi si manha... (só na festa, digo eu e como vimos também pelas narrações de Castro Henriques) Funana so na barraca papelon Undi k mininus ta labi-labi...na lama...sima liton
Zézé, um dia, nos explicou em que circunstância lhe surgira o “Ambienti Selecto”...que só podia sair da cabeça desse grande compositor. Falarei sobre isso um dia.
Uma coisa é certa. O africano forro ou escravo, como podemos constatar das narrativas de ICH, participou sempre no “mundo social-musical=“cultural”-religioso” da Lisboa-Africana, desde a sua “chegada”, na capital do Reino, nos inícios do séc. XV.
E...não podia ser diferente, aqui, nas nossas ilhas, onde o negro, escravo ou forro, desempenhara sempre preponderante papel!!.
Aliás, é sabido da história que só existimos como povo porque fomos uma sociedade escravocrata.
Regressaremos, como prometido, para finalizar a analise do “Roteiro Histórico de Uma Lisboa Africana” e tirar as minhas conclusões. Aguardem pelo próximo episódio. Disse, aliás, escrevi. 29/03/24.
PS:
1. Como vêm o artigo foi escrito há muito tempo.
2. Vou tirar uma folguinha para preparar a edição do meu 1° livro.
Continuando o prazeroso passeio pela “Roteiro Histórico de uma Lisboa Africana: Séculos XV-XXI”, da Isabel Castro Henriques, vos trarei mais algumas passagens da obra.