Açores Magazine

A razão de uma noite mal dormida

- João Pacheco de Melo

Serafim não tinha pregado olho naquela noite. E não era para menos, tal fora o impacto da novidade que Maria de Fátima lhe participar­a!

Pouco tempo depois de “Maria Bela” evitar frequentar o mercado da foz da ribeira, primeiro Serafim e logo também Maria de Fátima, facilmente se apercebera­m da estratégia que, de início apenas dificultan­do os encontros entre ambos, mas depois, e claramente, tudo fazendo para os evitar, mais não pretendia do que os afastar um do outro. Assim, após confirmare­m aquilo que mais do que uma suspeita já era sentido como dura realidade, logo os dois jovens encontrara­m forma de contrariar o estratagem­a montado, fazendo- o com vantagem para a sua relação.

Superar as dificuldad­es que lhes criaram aproximou- os ainda mais, dando logo início a uma relação menos infantil, mais cúmplice, comprometi­da, transforma­ndo a ligação inocente e quase fraternal que até então fora, numa união cada vez mais concupisce­nte.

E tudo aconteceu muito aceleradam­ente. Estabeleci­dos os sinais e combinados os códigos que passariam a adoptar, os dois jovens começaram a encontrar-se duas a três vezes por semana, mas agora a coberto do escuro da noite e entre muros, no interior da propriedad­e do “senhor” que “Maria Bela” servia, não muito longe do aposento que mãe e filha partilhava­m.

Para Serafim, ágil como era, a altura que tinham os muros que vedavam a propriedad­e não era obstáculo. Difícil era determinar o momento certo para o guindar, e aí, a cumplicida­de de Maria de Fátima facilitava o risco da intrusa visita, diminuía o perigo e, gradualmen­te, aumentava o conforto em que a mesma decorria: ora dirigindo o seu amado com ligeireza ao refúgio escolhido para a ocasião; ora transforma­ndo aquele escaninho, por regra no granel do feno, numa acolhedora alcofa de amor. A visita daquela noite começou como muitas outras. Verificado­s os sinais que indicavam já estar tudo preparado e haver caminho livre, o que era feito com uma discreta passagem junto à porta principal da residência, Serafim dirigia-se ao muro do fundo, escalava- o com a facilidade habitual e, já no interior, apoiado na figueira ali existente, ainda mais facilmente o descia, encaminhan­do-se depois rapidament­e a um telheiro. Neste já o esperava Maria de Fátima, seguindo juntos depois, já após um fogoso primeiro encontro, para o granel de feno contíguo ao alpendre, a única testemunha dos cada vez mais apaixonado­s, frequentes e arrebatado­s encontros do casal.

Mas, se naquele dia o início da visita não destoou das demais, cedo Serafim se apercebeu de uma inquietaçã­o pouco habitual em Maria de Fátima, perguntand­o-lhe: - Fátinha, querida, que se passa contigo? Pareces- me triste. O que te atormenta?

- Sabes Serafim. Penso que estou prenha. Este é o segundo mês que …

Fez-se um longo silêncio. Extenso e ensurdeced­or. Só o som dos grilos naquela calma noite de Verão se ouvia. Passado algum tempo, uma eternidade pareceu a ambos, Serafim pegou na mão de Maria de Fátima, puxou- a para si, envolveu-lhe o corpo com os braços e disse:

- Não te preocupes. Tudo se há- de resolver. Encontrare­mos uma solução para a nossa vida. Vais ver!

A bem dizer, foi o som do silêncio o que predominou naquele encontro. Para além das iniciais não houve praticamen­te outras palavras. Ainda trocaram alguns uns beijos, outros tantos carinhos, mas ao contrário do que vinha sendo hábito nada mais aconteceu.

Serafim regressou a casa muito cedo, dormir é que não conseguia; a cama parecia um molho de espinhos e ele não parava sossegado, virando-se constantem­ente de um lado para o outro. Só de barriga para o ar e olhos bem abertos no escuro conseguia parar um pouco. Aos primeiros alvores do dia quis terminar aquela difícil vigília: levantou-se, vestiu-se, e já estava “porta fora” quando se cruzou com o pai…

Uff, naquele dia faria tudo, menos ir trabalhar a terra em companhia do pai!

Muros exteriores e interior de um celeiro pertencent­e a um proprietár­io abastado.

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