CATARINA SOBRAL
Autora e ilustradora, além de livros como ‘Greve’ ou ‘O meu avô’ (vencedor do Prémio Internacional de Ilustração na Feira do Livro de Bolonha) foi uma das ilustradoras convidadas para as celebrações oficiais da revolução.
“Penso às vezes como é que seria a minha vida se tivesse 30 anos em 1974 e aquela que eu vivo agora. Portanto, o 25 de Abril mudou a minha vida de várias formas. Posso votar, posso viajar para fora do país sem pedir permissão, posso abrir uma conta no banco, posso tomar contraceptivos, posso dizer o que penso, posso votar em eleições livres. O voto é para mim especialmente importante. Os meus avós eram da classe trabalhadora, a minha avó não podia votar porque não tinha o ensino secundário, e quanto ao meu avô, era o patrão que votava por ele. Nas eleições do Marcello Caetano, chegou à mesa de voto e o patrão já tinha votado em nome dele. Portanto, pelo menos hoje ninguém vota por nós. Claro que isto não é uma realidade universal. E não é preciso irmos muito longe: as eleições da Bielorrússia em 2020 ainda não foram eleições livres. Um artista não tem de ter necessariamente preocupações sociais, mas para mim quando um artista vive alienado da sua realidade, a sua arte não é tão interessante. Para mim, uma das funções da arte é fazer perguntas, desconfortar e emocionar. A arte é criar uma mudança, ligar ou desligar um interruptor, e quando a arte dialoga com o mundo, isso acontece. A arte pode ajudar a mudar o mundo.
Gostei muito de participar nas celebrações dos 50 anos do 25 de Abril. A ideia à partida era que fossem de festa, de comemoração da liberdade. E eu tive muita preocupação com a representatividade, porque temos de pensar que o 25 de Abril também aconteceu para os africanos e marcou um território muito maior do que apenas Portugal e as pessoas que cá viviam. Então mostrei nos meus desenhos pessoas de diferentes origens e acho que resultou bem. As pessoas que estão agora nos 30-40, como eu, têm mais noção da importância do 25 de Abril porque já viveram a crise e a precariedade, e a própria memória da revolução ainda está presente. Os mais novos estão mais distantes de tudo. Alguém que é filho de alguém que já nasceu depois do 25 de Abril não tem a vivência nem a percepção de como as coisas eram diferentes, da dureza da vida no Estado Novo, das terríveis condições em que muita gente vivia. Os meus avós foram emigrantes e a geração dos meus pais e dos meus tios foi a primeira com curso superior. Mas a maioria das histórias, mesmo aquelas que se passaram com os meus avós, foi a minha mãe que me contou. Um dos meus avós tinha 9 irmãos, e lembro-me de uma fotografia de família onde uma das minhas tias-avós tem um buraco no sapato. Então andou a chinelar o caminho todo até ao fotógrafo porque só tinha aqueles sapatos. É muito importante esta partilha familiar, porque nós não crescemos no nada, e as experiências verdadeiras tornam uma data abstrata numa situação real e muito mais tocante.
Portanto, sim, se eu tivesse vivido anos antes do 25 de Abril sem dúvida que o meu percurso teria sido diferente. Penso muitas vezes nisto, na sorte que é preciso ter com o tempo e as circunstâncias em que nascemos.”
Um artista não tem de ter necessariamente preocupações sociais, mas para mim quando um artista vive alienado da sua realidade, a sua arte não é tão interessante.