Correio da Manha - Boa Onda

RECORDAÇÕE­S FAMILIARES À BEIRA DO INVERNO DE MOLEDO

OMEUAVÔSAB­IAQUEO PASSADO ERAUMCONTI­NENTE DISTANTE QUE NÃO VALIA A PENA DESPERTA RDA SUA VIGÍLIA

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DURANTE O INVERNO, AO FIM- DE- SEMANA, as dunas de Moledo não são um lugar de passeio, mas de contemplaç­ão. A foz do Minho, à direita, ao longe, assemelha- se aos pequenos estuários enevoados da costa de Biarritz, transforma­ndo a nossa província numa réplica do cosmopolit­ismo romântico do tempo dos meus pais. Foi aí, entre as escadas de madeira de hotéis de outro século, que o velho Doutor Homem, meu pai – cumprindo um desígnio traçado com pudor – pediu Dona Ester, minha mãe, em casamento. Do acontecime­nto restam poucas memórias, mas na casa de Moledo conservam- se fotografia­s da época; nos anos vinte eram um luxo que devia exercer- se com parcimónia.

Talvez por isso o meu avô, administra­dor de quintas do Douro, figure em raras fotografia­s. As poucas que existem bastam para revelar um homem com pouco sentido de humor, austero e viúvo, solitário ( a avó Maria do Carmo morreu cedo) como uma personagem de romance, constrangi­do pela necessidad­e de educar quatro filhos que seguiram destinos muito diversos e foram pessoas felizes, saudáveis e alegres – e, no caso do velho Doutor Homem, meu pai, um prodígio de ironia que ia mal com o progenitor.

D e v e z e m quando calha, durante os almoços de família, que entre irmãos ( somos cinco) recordemos a sua figura elegante e pacata evocando a serenidade de um cavalheiro em paz com a sua vida. Nunca soubemos quase nada dele, nem depois da sua morte, em 1960 – para além do facto de viajar com frequência entre a estação de São Bento e as colinas áridas de B a r c a d ’ A l v a ( onde apenas fui d u a s vezes e m peregri nação), detendo- se aqui e a l i e m q u i n t a s que em tempos foram informalme­nte solo britânico, transporta­ndo os seus livros de contabilid­ade e uma pasta com documentos para assinar – e desejando regressar ao Porto para ler as edições atrasadas do ‘ O Primeiro de Janeiro’.

A Tia Benedita, sua irmã, recusava- - se a sair de Ponte de Lima e era- lhe tão dedicada quanto diferentes os seus temperamen­tos. Enquanto ele era discreto e conciliado­r, a deliciosa guardiã do miguelismo dos Homem desconfiav­a até dos ingleses das quintas do Douro, a quem atribuía propósitos demasiado liberais e que acusava de terem traído o rei proscrito. O meu avô encolhia os ombros, convencido de que o passado tinha passado há muito e era um continente distante que não valia a pena despertar da sua vigília porque o Inverno duraria o tempo que teria de durar. Surpreende­nte lição de um contabilis­ta.

DURANTE O INVERNO, AO

FIM- DE- SEMANA, AS DUNAS DE MOLEDO SÃO UM LUGAR DE CONTEMPLAÇ­ÃO

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