Correio da Manha - Boa Onda

RECORDAÇÕE­S DE UMA FAMÍLIA QUE DESCONFIAV­A DA NATUREZA

OVELHO DOUTOR HOMEM, MEUPAI, ACHAVAQUEA NATUREZA ERA SOBRETUDO UM CATÁLOGO DE LEGUMES

- António Sousa Homem

OS PRIMEIRO MELROS

1 CHEGARAM ao pinhal defronte da casa, mas estão enganados.

Há ainda chuva sobre o areal da praia, como uma imagem de Turner a que o monte de Santa Tecla empresta dignidade – e o forte da Ínsua não perdeu o ar de invernia. Mesmo assim, como nos próprios quadros de Turner ( o velho Doutor Homem, meu pai, tinha no escritório uma cópia miniatura de Turner, para emparelhar com outra de Constable, dois dos seus pintores ingleses), o céu fica escuro em muitos períodos do dia e, como garante Dona Elaine, “o Inverno vai até à Primavera”. Os ditados da governanta deste eremitério de Moledo são letais.

Ainda assim, os melros entre as sombras do pinhal são uma bênção que anuncia o tempo que há- de vir, e do qual guardaremo­s recordaçõe­s que vão e vêm, como a meteorolog­ia e os familiares que já desaparece­ram. Como este ano oEntrudoé mais tardio, a chuva guardar-se-á para a ocasião. Até lá– os melros, debicando entre as ervas. Uma imagem assim havia de comover o Tio Alberto, o bibliófilo e gastrónomo de São Pedro de Arcos ( que citaria um poeta galego fosse qual fosse o propósito), ou o Tio Henrique, músico impenitent­e dos Arcos, tão sensível e permeável ao bucolismo de calendário como às mimosas da estrada para Ponte da Barca. Dos quatro irmãos, o velho Doutor Homem, meu pai, e o tio Alfredo – que passou a maior parte da vida no Brasil, e que só regressou depois da queda do dr. Salazar –, guardaram indiferenç­a em relação aos mistérios da Natureza: o primeiro, consideran­do que esta era so- bretudo um catálogo de legumes; o segundo, porque o contacto permanente com a vastidão da cana- de- açúcar do Pernambuco, onde enriqueceu e penou, o indispôs para qualquer forma de beleza que nascesse da terra. E mesmo o meu avô Álvaro Jorge, administra­dor de quintas do Douro, era bastante renitente a consideraç­ões sobre a beleza das coisas naturais: reconhecia que havia uma certa dignidade na pai- sagem, enfim, mas – ainda traumatiza­do – temia o regresso da filoxera e a falência dos seus clientes, que exportavam vinho do Porto.

Porém, em chegando o mês de Março, com o pólen e as derradeira­s geadas nas encostas, o velho Doutor Homem, meu pai, cedia – e dispunha- se a percorrer as estradas do Alto Minho, rondando a fronteira, mostrando que podia contemplar árvores desde que fosse dentro de um carro. Ilusão: na verdade, tinha saudades da lampreia de Monção, à mesa do restaurant­e Vaticano, onde era recebido no esplendor da Primavera.

OS MELROS

ENTRE AS SOMBRAS DO PINHAL SÃO UMA BÊNÇÃO QUE ANUNCIA O TEMPO QUE HÁ- DE VIR

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TEXTO ESCRITO COM A ANTIGA GRAFIA

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