Correio da Manha - Boa Onda

“As pessoas andam anestesiad­as”

Gabriel O Pensador regressa com um novo trabalho

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Vinte e cinco anos de carreira em Portugal. Ainda se recorda da sua estreia por cá? Sim, claro que sim. Eu até tenho isso registado em vídeo. Foi no Pavilhão Carlos Lopes, no meu primeiro espetáculo fora do Brasil. Lembro- me que estava numa cadeira de rodas com o pé engessado e que estava muito inseguro por causa daquilo. Só que quando entrei no palco foi a loucura.

O que é que lhe agrada mais em Portugal?

Agradam- me as pessoas, gosto do público e da forma como me tratam e agrada- me o surf. Portugal tem uma costa privilegia­da. Depois, o português faz um uso da nossa língua que me inspira muito. Há um vocabulári­o mais rico. Mas se falar da primeira coisa que me vem à cabeça quando penso em Portugal, são de facto as amizades que tenho feito. Aliás, eu tenho uma música dedicada a Portugal que é o ‘ Tás AVer’, que tem uma frase do grande Sér- gio Godinho que diz que “a vida é feita de pequenos nadas”. São 25 anos em Portugal, mas quase 28 de Gabriel o Pensador, desde o ‘ Matei o Presidente’. Como é que foi esse início?

Não parece que passou tanto tempo. A verdade é que eu ainda me arrepio hoje como no i nício. É como se eu tivesse uma missão. Eu não quero parecer pretensios­o, mas quando estou no palco sinto que há ali uma coisa sagrada. Eu nunca quis a fama. Comecei a fazer rap porque o racismo e a corrupção estavam à vista de todos e eu precisava de falar daquilo que tinha engasgado. Não pensava em ser artista. Fazer rap sempre foi muito visceral e isso mantém- se.

Acha que a sua carreira teria arrancado sem a polémica do tema ‘ Matei o Presidente’, que chegou a ser censurado?

Eu não gostei daquela censura. Foi uma rádio do Rio que co- meçou a passar a música. Um dia, o radialista ligou- me a dizer que a minha música estava em primeiro lugar e que tinha ultrapassa­do a Madonna. Quando comecei a falar para outras rádios percebi que havia uma forma de censura. O governo ti nha emitido uma nota para todas as rádios do país a dizer que quem tocasse aquele tema ia sofrer uma devassa fiscal. Então eu fui para a imprensa e denunciei

“INTOLERÂNC­IA À DIFERENÇA CONTINUA A SER O TEMA QUE MAIS ME CHOCA”

isso. Pouco tempo depois, o ministro da Justiça admitiu a censura. Mas já naquela altura, tudo o que eu queria era que as pessoas ouvissem a minha música, não pensava no sucesso que ela podia ter. Ainda não havia internet e eu queria era que ela fosse ouvida em São Paulo, em Brasília, em Salvador e por aí fora.

O seu pai teve uma influência determinan­te no inic i o d a s u a c a r r e i r a , quando o Gabriel quase morreu baleado? Foi numa fase louca da minha vida em que tinha a mania de andar a pintar e a escrever em muros. Era algo que eu fazia mais pela adrenalina de ser uma coisa proibida. A intenção não era estragar, mas criar ali uma forma de expressão. Aos 16 anos eu era quase viciado naquilo. Então hou- ve um dia em que estávamos a pintar perto de um baile funk, quando alguém foi baleado. Houve muita gente que começou a correr e nós corremos também quando vimos a polícia. Eles viram dois jovens fugindo com uma coisa a brilhar na mão ( a lata de tinta), pensaram que era uma arma e atiraram na nossa direção. Felizmente as balas não acertaram e aquele mal entendido foi esclarecid­o. Já na presença do meu pai fiquei tão envergonha­do com a frustração dele que larguei as pinturas. Desse episódio saiu a letra: “Eu tinha q u a s e morri d o / n ã o t i n h a med o d a morte/ mas s u a cara de deceção falou mais forte/ Assim morreu o meu vício de pichador/ você matou o pichote pai/ e faz nascer o pensador”.

Em 28 anos os seus temas continuam atuais. Isso torna o contexto político e social desinteres­sante ou muito pelo contrário?

As pessoas andam anestesiad­as e são facilmente manipulada­s e isso motiva- me a escrever, fazendo novas abordagens. O que mais o incomoda?

A intolerânc­ia à diferença continua a ser o tema que mais me choca. O único antídoto para i sso é mesmo o a mor. Por medo, egoísmo ou ignorância nós não conseguimo­s evoluir, e não tentamos entender e aprender com o outro.

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GABRIEL OPENSADOR TEM 44 ANOS

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