Correio da Manha - Boa Onda

SER VELHO É NÃO DEPENDER DA LIBERALIDA­DE DO TEMPO

- TEXTO ESCRITO COM A ANTIGA GRAFIA

OSVELHOS ESTÃO IMUNES ÀDESCONSID­ERAÇÃO DOS QUENÃOCONC­ORDAMCOMAS­SUASOPINIÕ­ES

A GRANDE VANTAGEM DE TER A IDADE com que me apresento, considera a minha sobrinha Maria Luísa, é a de eu, quando falo de qualquer assunto, “não ter nada a perder”. A eleitora esquerdist­a da família considera, assim, que os velhos – sobreviven­tes de uma era anterior ao Titanic e à invenção do telefone portátil – estão imunes à desconside­ração dos que não concordam, nem um pouco, com as suas opiniões.

Eu percebo- a. Arrastado para esta idade pelo carácter benigno dos deuses que me protegem, a minha opinião tem tanta cotação como a meteorolog­ia dos dias que abriram o mês de Março: insegura e assim- assim, mas sem necessidad­e de comentário. O Tio Albano Estêvão, que vivia em Ponte da Barca mas era um republican­o contumaz ( além de ser casado com uma carlista das Astúrias, a Tia Inés), propôs várias vezes que o direito de voto fosse retirado a partir dos oitenta anos, para que os velhos reaccionár­ios não pudessem votar no contra- almirante Américo Thomaz. Ele dizia isto nos almoços anuais de Ponte de Lima, rodeado de provectos anciãos que nos seus sonhos se julgavam validos do Senhor Dom Miguel – e, longe de causar alarido e reprovação, como provavelme­nte queria, obtinha inesperado­s sinais de concordânc­ia. Só a Tia B e n e d i t a , q u e prometeu morrer depois do dr. Sal azar ( de quem não gostava), encolhia os ombros e se limitava a perguntar: “O que é o direito de voto?” Convenhamo­s que, como se dizia nos anos setenta, a matriarca miguelista dos Homem não estava preparada para a democracia.

No restante, a minha sobrinha Maria Luísa tem razão: não só tenho a impertinên­c i a d e fa l a r d e “qualquer assunto” como as minhas opiniões são demasiado irregulare­s e, certamente, desmentida­s pelas evidências. Nenhuma das coisas me incomoda: não dependo de um patrão severo, nem da galhardia ou liberalida­de dos governos; e só Dona Elaine, para sua infelicida­de, controla o meu humor matinal durante o pequeno- almoço de torradas e café de cevada. Ser velho, reconheço, abre o caminho a certa irresponsa­bilidade – segundo Dona Ester, minha mãe ( que vigiava a ordem das frases do velho Doutor Homem, meu pai) voltamos a ser adolescent­es, o que em mim é uma impossibil­idade. As minhas irmãs, que nunca concordara­m comigo em quase nada, garantem ao resto da família que nasci já com certa idade, com fato de três peças e chapéu de feltro, e a ler o‘ Primeiro de Janeiro’. É assim que costumo calar a minha sobrinha.

NÃO DEPENDO DE UM PATRÃO SEVERO, NEM DA GALHARDIA OU LIBERALIDA­DE DOS GOVERNOS

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