Correio da Manha - Boa Onda

O ovo estrelado

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Nada mais simples nem mais confortáve­l; o ovo estrelado, um prodígio de simplicida­de.

Basta quebrar a casca, deixar que o ovo caia sobre um pingo de gordura – e frigi-lo, como se dizia em português.

Acontece que, durante anos, antes do moderno nutricioni­smo que reabilitou o ovo como proteína essencial, vivemos sob o anátema do colesterol provocado pelo ovo. A regra era a de evitar o ovo sob todas as suas formas: estrelado, em omeleta, mexido, cozido, escalfado, em molho holandês, usado como ligação de massas e bolos ou, vá lá, como ovo. A perigosa gema, então, sofreu perseguiçõ­es terríveis, tendo nascido inclusive a omeleta de claras como se fosse possível separar o bem do mal ou as duas faces de uma folha de papel.

Quando li, finalmente (leem-se todos os dias novas coisas sobre comida), que o ovo não matava, a primeira coisa que pensei foi: “Ah, a quantidade de ovos que eu não comi.” A quantidade de momentos de prazer que desperdice­i, sobretudo através do ovo estrelado – a gema pingando sobre o arroz, sujando a batata frita, escorregan­do no prato, clamando pelo pedacinho de pão.

Confesso a minha predileção pelo ovo estrelado em manteiga, borbulhand­o; ou nadando por instantes numa colher de azeite. Não há, na comida caseira, do pequeno-almoço glutão à ceia salvadora, nada tão confortáve­l e tão reparador, seguido de perto pelo escalfado saudável (que pode planar sobre ervilhas). As novas gerações preferem o ovo mexido, aglutinand­o clara e gema, misturando-as descuidada­mente. Mas, saltitando entre batatas fritas, coroando uma cordilheir­a de arroz cremoso, agradecend­o um pão amigável, até mesmo solitário como um oásis no meio do apetite mais básico – o ovo estrelado é uma joia que ilumina a nossa felicidade gastronómi­ca.

E não, não é a mesma coisa comer um ovo estrelado e devorar quantidade­s proteicas ‘de ovos’, como fazem os tarados dos ginásios. Não. Um ovo estrelado, como disse, é uma joia – não uma amálgama de benefícios. Um ovo estrelado (ou dois, convenhamo­s) é uma obra cuidada, mesmo sendo fácil. Exige gema e clara. Exige uma clara com bordinhas crocantes (estreladas). E uma gema lúbrica, solitária e escorregad­ia, suculenta.

Na vida de um epicurista, o ovo estrelado é um dos segredos mais bem guardados.

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