Bacalhau, o Cartão de Cidadão
De vez em quando – não liguem – tenho saudades do bacalhau. Do bom, velho e tradicional bacalhau. As saquetas de bacalhau congelado, dessalgado e preparado para cozinhar são hoje um recurso para famílias sem espaço, tempo, paciência ou experiência para comprarem um bom peixe de entre quatro e cinco quilos e procederem às etapas necessárias à obtenção do Cartão de Cidadão, a saber, abraçarem o bacalhau como um desígnio nacional.
Também já comprei bacalhau congelado – mas não é a mesma coisa. Nem pode ser. Na loja, peço que me cortem o bacalhau a preceito: aqui os lombos, ali as postas altas, depois as mais finas, além o rabo e as partes “menos nobres”. Geralmente, segue-se a isto um período de entrega e dedicação: demolhá-lo por fases, coisa que leva dois a três dias, ao fim dos quais o peixe é empacotado no congelador. Na altura de cozinhar, imagino a posta cozida com grão de bico, grelos e ovo cozido; as orelhinhas e tiras mais finas levemente escaldadas e preparadas para pataniscas, arroz (variadíssimas hipóteses se colocam aqui) ou bolinhos; as postas médias reservadas para lascar e servir ‘à Gomes de
Sá’ (muito) ou ‘à
Brás’ (menos), ou de cebolada minhota (bastante), ou passando pela grelha e servido com azeite, cebola, alho, pimento em querendo, um nadinha de colorau (muito, de novo) – isto sem esquecer as cerca de cem receitas de bacalhau (incluindo variantes ‘com natas’, ‘espiritual’ e mais amenas) que prestimosamente se reúnem em vários livros dedicados à nossa culinária.
Em primeiro lugar, medir a tensão arterial. Se estiver naqueles considerados ‘valores normais’, entre 11-7 e arredores, estamos prontos para um bacalhau levemente salgado, cremoso, cheio de gelatinas sódicas que relembram a criação do Mundo. As pataniscas são e devem ser severamente consideradas uma joia da nossa gastronomia: apenas escaldada, a posta deve ser arrefecida e lascada; o polme servido com a água onde apenas ferveu, um nadinha de leite, alho e cebola picada, salsa abundante, um cálice de aguardente, ovo batido (embora o ideal sejam claras batidas à parte), pimenta – e repouso de meia hora antes de fritar.
Tirando todas as outras receitas, e mesmo as mais simples (cozido com grão, uma batata, ovo e picadinho de salsa e cebola – que devia ser comido pelo menos uma vez por mês), dou parte da vida por um arroz de bacalhau, com ou sem tomate (com), levemente apimentado. Se sobrar algum para o dia seguinte, como-o com um ovo estrelado que há de perfumar e dar consistência a tudo o resto. Fuzilem-me.
PEÇO QUE ME CORTEM O BACALHAU A PRECEITO