Correio da Manha - Boa Onda

Esperai pelo farnel

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Omeu avô partia do princípio de que qualquer viagem, trajeto de comboio ou carro, passeio pela serra ou ida à pesca nas margem do Douro, tinha de incluir – necessaria­mente – um farnel. Nesses anos, e em famílias remediadas e sensatas, raramente se ia ao restaurant­e a não ser em casos de força maior e, convenhamo­s, como um recurso. Herdei esse gosto pela comida de casa e ainda hoje, confesso-vos, ao fim de dois ou três dias a ‘comer fora’ tenho saudades de jantar em casa, de cozinhar e, peço desculpa às almas mais sensíveis, até de lavar a loiça e de pôr a mesa. Há pequenos prazeres que se descobrem com a idade adulta ou com a idade madura, mas a maior parte deles tem a ver com a memória das coisas que acontecera­m há muito tempo.

Nesta altura do ano, quando apetece passear pelas serras, ou regressar à beira do mar num fim de semana menos pálido, nada como um farnel. Com os meus pais fiz farnéis deliciosos. E fiz merendas de primeira ordem com os meus filhos – que um dia voltarão a relembrá-las, como eu recordo as da minha infância e adolescênc­ia. Mas, repito, nada como a idade madura para enumerar os rissóis, os bolinhos de bacalhau, as saladas, as sanduíches, o inevitável frango no forno, a massa folhada, o fatal bolo em fatias, os facultativ­os enchidos e carnes frias, os ovos verdes, as tartes ou o que calhasse e estivesse na linha de inspiração.

Porém, o mais importante era a disposição para o farnel – ou, repito, para a merenda, à antiga portuguesa: um apetite frontal e distraído, omnívoro; a disponibil­idade para perder tempo com coisas tão inúteis como a contemplaç­ão das florestas e da linha do horizonte, ou um jogo de sueca debaixo de uma árvore, sem mencionar a tentação de uma sesta com os primeiros calores da tarde. Tudo isto parece idílico, e também fazer ignorar o trabalho que dá. Mas é compensado­r e significa um dia em que a alma vai de passeio e se diverte com a capacidade de nos sentarmos ao ar livre.

Um dia, na Indonésia, levaram-me a conhecer um jardim botânico no alto das montanhas, onde haveria um lago. A paisagem era tranquila e silenciosa como se esperava mas, depois, ao descer uma colina, deparei com uma pequena multidão de pessoas sentadas, a dois ou em grupos familiares, depenicand­o ‘nasi goreng’ (arroz frito) e perninhas de frango ou espetadas – e olhando em frente, para o lago e para as árvores da montanha. Já contei esta história algumas vezes, mas nunca deixo de me comover com a resposta que me deram quando perguntei sobre o que é que estas pessoas estavam ali fazer:

“A ver árvores”.

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