O que resta de uma refeição?
Estar em casa obriga-nos – por obrigação, devoção ou puro prazer – a coordenar as refeições com mais cuidado. Há quem ainda não tivesse chegado a esse estado em que dá mais gozo preparar o jantar do que “jantar fora”, mas o atual estado das coisas remete-nos para o reduto doméstico durante uma boa temporada, o que fornece a oportunidade ideal de cozinhar e de esvaziar a despensa ou o congelador.
Porém, há outro prazer a retirar da possibilidade de ir cozinhando em casa, que é o de fazer aquilo que, na linguagem da economia doméstica do passado século, se chamava “a arte dos aproveitamentos”. As novas gerações, habituadas a um regime de abundância, ou de menos parcimónia, em geral conhecem pouco dessa arte – e da sabedoria que lhe está na base. Sabe-se que certa comida até é melhor “no dia seguinte” ou “na refeição seguinte”, mas eu falo de outra matéria: dos restos e de como me escandaliza livrar-me de comida não consumida. A minha tia Maria de São José poderia ministrar um curso de doutoramento nesta área disciplinar; mas aqui não trato de economia doméstica, e sim do prazer verdadeiro em reaproveitar a comida que sobra do almoço de domingo ou do jantar de sábado. Tudo serve: cozidos, assados, estufados, grelhados. E crus, naturalmente.
A grande vantagem de cozinhar estes elementos (ou seja, neste caso, “aproveitar restos”) é que não teremos tanta piedade deles no momento de os picar, triturar, esfacelar, fazer em tiras ou cortar em cubos; e estamos livres para inventar comida procurando apenas satisfazer os três princípios que devem nortear a atividade de uma cozinha doméstica: 1) contentar os que estão à mesa; 2) obter vantagem do que se cozinha; 3) manter um sentido geral de economia no lar. Há um secreto prazer em reunir esses três pontos numa só refeição: uma tarte, uma empada, um arroz salteado, uma omeleta estapafúrdia, uma sanduíche barroca, uma cobertura de ovo escalfado ou estrelado, um picadinho, um desfiado, tudo o que quisermos inventar até começarmos a construir a nossa própria gramática, ou seja, as nossas “regras de associação” entre coisas que eram restos e que, depois, se transformam em ingredientes que transportam um sabor, uma memória, um gosto turvo e até amigável.
Há, naturalmente, pessoas pouco sensíveis a este convite. Tenho uma razoável pena delas, porque perdem algumas experiências interessantes. Cozinho restos muitas vezes, até porque gostei daquela refeição (de onde eles vieram) da primeira vez. E, cozinhá-los, é prestar uma homenagem à própria comida que preparámos.
CERTA COMIDA ATÉ É MELHOR
“NO DIA SEGUINTE”