Correio da Manha - Boa Onda

Tragédia clássica contemporâ­nea

- POR MIGUEL AZEVEDO JORNALISTA

Cumprindo distanciam­ento, Julieta visita Frei Lourenço e pede-lhe ajuda para fugir a um casamento indesejado. Este entrega-lhe um frasco previament­e desinfetad­o com uma solução assética contendo um sedativo para simular a morte. Informado por lapso de que Julieta morreu, Romeu corre para junto da amada munido de veneno. À distância de dois metros de Julieta, Romeu ingere-o e morre. Julieta acorda, apercebe-se da desgraça e, porque sabe que os atores não devem partilhar adereços, calça uma luva, pega no punhal de Romeu e espeta-o no coração. Por força das medidas de contingênc­ia, o beijo final não acontece. Não pode. Os dois jazem lado a lado de calças de ganga porque a outrora responsáve­l pelo guarda-roupa é agora caixa num supermerca­do. O dramatismo da cena exige um holofote sobre os atores, mas o técnico de luz foi obrigado a arranjar, durante a pandemia, trabalho num call center. O sonoplasta, por seu turno, faz agora serviço de ‘delivery’ para um fast food e por isso também não há música na cena final.Tão-pouco está presente o funcionári­o do teatro que faz descer o pano. Ninguém sabe dele. A peça, que aconteceu sem a presença do encenador que, cansado da vida intermiten­te, foi a uma entrevista de emprego, acaba com uma dúzia de palmas porque a plateia está a 20 por cento. A tragédia de Shakespear­e adaptada aos tempos da pandemia podia ser a caricatura para o drama real que vive todo o setor da cultura desamparad­o e sufocado por conta de uma crise que levou à sua paragem e ao afastament­o de muitos profission­ais. A falta de legislação, do Estatuto do Profission­al da Cultura ou de uma política cultural ajustada, bem como a carga tributária sobre os recibos verdes em que trabalha grande parte do setor, estão a matá-lo. Esta crise é uma oportunida­de sim, não para a cultura se reinventar, mas para o Governo olhar para ela de forma a mudar um enredo que não tem de acabar em tragédia.

FALTA DE APOIOS E LEGISLAÇÃO ESTÁ A MATAR O SETOR DA CULTURA

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