Correio da Manha - Boa Onda

Peixes do rio, no Sabor

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Que cessem as mazelas deste ano. Este é um pedido comum a muitos de nós, por um motivo ou outro – um ano cedido de empréstimo à pandemia, ou apenas adiado por causa dela. Nada a fazer; o mundo parou, o que era perigoso tornou-se fatal, e só nos resta retomar os prazeres de cada dia. As pessoas sábias percebem facilmente que o futuro é já hoje, já ali, já aqui – e que não devemos adiar demasiado.

Diante destes princípios gerais, o que fazer? Ir comer peixinhos do rio, como na minha terra, indo pelas estradas de carqueja, alfazema, giesta amarela, vinhas que recuperam as folhas, amendoeira­s que perdem aquele ar de infância florida, aproveitan­do a primeira tepidez do ano. O rio Sabor pede a visita – há a primeira tepidez do ano, temperada pelo vento fresco à flor das águas – e quem já provou esses “peixinhos do rio” sabe do que se trata: um mescla aromática de barbo, escalo e bogas, de tamanhos variados mas cujo segredo está na fritura, no tempero de sal, alho, hortelã da ribeira (também conhecida nas aldeias do Douro como “erva peixeira”), e, em querendo, um nadinha de malaguetas verdes.

O prato, que era o de muitas aldeias na reta final do Sabor e ao longo do Douro, é hoje um emblema da Foz do Sabor e das Cabanas, a aldeia a dois passos. Para acompanhar, uma salada (alface, tomate, merujes em havendo, azedas em sendo capazes de encontrá-las nesta época) e talvez migas à moda da terra, simples e como se fazem em todo o lado: pão, azeite, alho, ervas.

O enquadrame­nto – por assim dizer – não podia ser mais elegante: de um lado, o Sabor (agora com o curso das águas alterado pela barragem uns quilómetro­s acima; um belo lugar para visitar), as duas aldeias encavalita­das naquele dorso, entre a vista das escarpas da Lousa e as escarpas de Moncorvo; do outro, já em pleno leito do Douro, as margens da Quinta do Vale Meão e a vista deslumbran­te do que foi, há muito tempo, conhecido como o Cais da Barca Velha, designação que deu origem ao vinho mais famoso e celebrado. Essa barca, que atravessav­a as águas dos dois rios, está registada desde os séculos XVI e XVII, e existiu até aos anos sessenta do século passado (não existia então essa estrada marginal que segue entre o Pocinho e o início do vale da Vilariça); para abreviar, a minha mãe fez a viagem horas antes de eu nascer.

Seja como for, a viagem vale a pena, sobretudo depois de um ano de anemia romântica e de isolamento; a paisagem repousou; as águas do rio estão limpas (no verão, uma praia fluvial é um pormenor ligeiramen­te ruidoso – mas pertence ao cenário de um filme). Se incluirmos na ementa um vinho do vale e uma sobremesa de amêndoa, ou mesmo uma sesta sob a ramagem dos choupos, a elegia fica

completa.

A PAISAGEM REPOUSOU; AS ÁGUAS DO RIO ESTÃO LIMPAS

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JORGE MIGUEL GONÇALVES
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