Correio da Manha - Boa Onda

UMA BOA COMPANHIA

-

Acabo de ler a descrição de um jantar de 37 pratos, escrita por Jim Harrison (comia com Orson Welles e ensinou Jack Nicholson a comer), um poeta extraordin­ário e um “cronista de comida”, não de cozinha ou de restaurant­es – excessivo e brutal, dava tudo por uma reunião de amigos em volta de uma mesa, rodeados de caixas de vinho. A inveja é uma coisa ainda mais brutal, sobretudo quando se imagina o jantar prato a prato, copo a copo; aqueles sujeitos a deglutir, petiscar, debicar, triturar, mastigar e, depois, a recordar cada sabor.

Mas eu sou um pobre sujeito rural, como diria S. Exa., e também tenho as memórias de alguns almoços pantagruél­icos, em que havia estrelas mais modestas. Veja-se este mês de maio, afligido por uma gripe e pelo vento frio: em casa, escolho um frango no forno para competir com Jim Harrison, temperado de fresco, modestamen­te recheado de alho e anchovas, barrado com azeite e alecrim e uma noz de manteiga, polvilhado de sal e dourado em fogo muito lento até a pele ficar morena e apetitosa.

O mais importante não foi o frango mas o acompanham­ento, que eu não queria que fosse uma saladinha dessas que misturam folhas verdes e vêm empacotada­s, nem – mas apetecia – umas batatinhas coradas em azeite. Em vez disso, fui procurar o pacote de cuscuz que ainda estava vivo. Pus a água a ferver com sal e juntei-a ao cuscuz numa tigela (tinha picado um alho e escorrido uma colher de azeite), até cobrir. Ficaria ali dez minutos a amolecer e cozer aqueles grãos abençoados. Uma parte da água serve para escaldar um punhado de favas frescas a que tirei a pele, e meia dúzia de espargos gordos, transmonta­nos, verdinhos.

À parte, numa frigideira, uma cebola pequena, picada, em azeite quente – até ficar quase transparen­te, o que leva cerca de cinco minutos. Depois, umas rodelas de chouriço cortadas em quartos (tive preguiça de picar), e deixo que frite por mais uns minutos. Junto as favas e os espargos; é uma mistura estranha, eu sei, mas funciona muito bem com o creme das favas e o corpo crocante dos espargos. Mistura-se bem na frigideira, salteia-se. Um pouco de sal. Está quase tudo pronto; o frango continua em repouso na travessa, dourado e perfumado. Mexo o cuscuz até ficar todo soltinho, juntando-lhe então os espargos, as favas e o chouriço – ou seja, sujando-o com aquela benção e com dois ou três pés de coentros picados que ficam a matar.

O frango está tão bom que corto o peito em fatias e ainda me calha uma perna. Toma, Jim Harrison.

O MAIS IMPORTANTE NÃO FOI O FRANGO MAS O ACOMPANHAM­ENTO

 ?? ??
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal