Como nasce um campeão.
Não há uma receita universal, mas todos os especialistas desportivos dizem que podemos sempre ambicionar ser um Cristiano Ronaldo. O treino dos atletas que levam o nome de Portugal mais longe
Do primeiro treino à consagração, revelamos o segredo por detrás do sucesso de Fernando Pimenta, João Sousa e Inês Henriques - os ‘CR7’ das suas modalidades
Citius, Altius, Fortius’. Mais rápido, mais alto, mais forte. O lema olímpico corporizou-se em Cristiano Ronaldo quando saltou a 2,38 metros sobre o campo relvado do Allianz
Stadium, em Turim, Itália. Jogavamse os quartos de final da Liga dos Campeões e, dos ‘Blancos’ madrilenos aos alvinegros da Juventus, a elevação mereceu aplauso unânime. Num pontapé de bicicleta, cuja potência não ficou a dever à arte, a bola foi disparada a 72 quilómetros/hora do pé direito do madeirense e, em menos de um segundo, percorreu onze metros – num arco pouco pronunciado, indefensável – e fez balancear as redes da baliza de Buffon. De costas, paralelo ao chão, o corpo do jogador pairava a 1,41 metros do relvado. No Campeonato da Europa de 2016, diante do País de Gales, susteve-se a 76,2 centímetros do relvado. Com a cabeça, rematou com potência semelhante, a 2,63 metros de altura.
Os mínimos olímpicos para a qualificação no salto em altura masculino para os Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2020, colocam a fasquia nos 2,29 metros. Há um par de anos ultrapassar a barra colocada a 2,38 metros valeu o ouro ao canadiano Derek Drouin nas Olimpíadas do Rio de Janeiro.
Isabel Crespo, médica fisiatra responsável pelo acompanhamento da seleção nacional de atletismo nos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, observa que “é normal que, num País onde o futebol é rei, haja a tendência a que os pais coloquem uma bola de futebol nos pés dos miúdos”. Clonar a receita que produzirá um atleta com o mesmo traçado de CR7 é uma realidade distante e só a “prática e adaptação à modalidade fará perceber qual é a capacidade da criança para adquirir o controlo do movimento” com que não nasce. Em início de carreira, o treino multidisciplinar acaba normalmente por impedir que se consiga perspetivar o futuro desportivo dos mais novos.
Cristiano Ronaldo nasceu para o futebol aos oito anos, nas categorias de base do Clube Futebol Andorinha de Santo António, na Madeira. Moeda de troca que saldaria uma dívida de 450 mil escudos (2245 euros) do Clube Desportivo Nacional, com 12 anos rumou ao Sporting Clube de Portugal. Com um corpo de 23 – atestado por recortes biométricos –, aos 33 anos custou 100 milhões de euros ao clube de Turim, para onde se transferiu na última janela de mercado.
CR7 saltou a 2,63 metros de altura para marcar de cabeça
“Se uma criança iniciar a prática desportiva aos três ou quatro anos de idade vai, obviamente, ganhar um autocontrolo motor mais rapidamente do que outra que se estreie aos sete ou oito anos. Mas não há uma idade ideal para começar a prática – há atletas que se iniciam muito tarde e que se tornam grandes campeões. O que se sabe é que a maturação da coordenação demora tempo”, nota Isabel Crespo. Esclarece depois que “a prática exercitada em países orientais ou da ex-URSS – por exemplo - não vai ao encontro daquilo que se considera saudável para o crescimento da criança. Antes de se ser atleta, é se criança. Tenta-se produzir um campeão e ignora-se o facto de que a pessoa que está em frente tem meia dúzia de anos. É fundamental que isso não se esqueça. Uma carreira de atleta implica sempre que se viva como adulto e pode ser destruída exatamente por isso. Nenhuma criança nasce de base para nenhuma modalidade”, conclui.
As primeiras pagaiadas
Fernando Pimenta “não era um talento” quando, aos 11 anos, participou no programa de férias desportivas em Ponte de Lima. “Não andava nos primeiros lugares.
“Pimenta não andava nos primeiros lugares HÉLIO SOUSA, TREINADOR
“É importante garantir que os detalhes que fazem a diferença não falham. Abdica-se de muito por isso FERNANDO PIMENTA, CANOÍSTA
Virava muito, era descoordenado”, conta Hélio Lucas, treinador que desde a primeira pagaiada o acompanha. Atabalhoadamente, “virava e voltava a entrar na canoa” e o detalhe de personalidade, que lhe conferia a força para se erguer, valeulhe a chamada.
Hélio diz que conseguiu “moldá-lo em função daquilo que poderia vir a ser um grande desportista”. No mês passado, em Montemor-o-Velho, sagrou-se campeão do Mundo em K1 1000 me K1 5000 m.
Fernando Pimenta “sabia que era um momento importante”. “Queria oferecê-lo aos portugueses e escrever mais uma página da história do desporto português e da canoagem nacional. Tem um sabor especial conquistá-lo junto daqueles que me apoiam dia após dia”, revela o atleta. Desmistifica depois que o seu desempenho se faça de fórmulas secretas. “O segredo não existe.” É conhecido e assenta em “trabalho, dedicação e persistência”, conta.
O sonho é utópico. “Na alta competição tentamos a perfeição, sabendo que atingi-la é impossível”, reconhece o bicampeão.
Nos treinos - “e é aí que se ganham medalhas”, garante – guia o kayak ‘Nelo’, modelo 5, tamanho L, pelos 220 a 230 quilómetros que percorre todas as semanas. Adestra a força sete a oito horas por semana – na mesma medida em que exercita a condição cardíaca, em corrida. Chega a treinar três a quatro vezes por dia. De baixa estatura, compensa essa condição – que o torna menos sujeito a vento lateral – com pagaiada e meia e potência acrescida debaixo de água.
“É importante garantir que esses detalhes, que podem vir a fazer grandes diferenças, não falham. Abdica-se de muito por isso. São 11 me- ses de época non stop. Não há pausas. Treina-se, compete-se e fazemse estágios. Todas as épocas ultrapassamos mais de 200 dias de estágio. É muito tempo longe da família”, lembra o canoísta. Hélio Lucas admite ser “quase como um segundo pai para ele”.
Em 2013, em choque com a descrença de Ryszard Hoppe, então selecionador da modalidade que, a contragosto, afastou o atleta do K1 que almejava, renunciou à representação nacional no Mundial desse ano. “Chegou a ter processos dis- ciplinares na Federação.” Foi privado de bolsas olímpicas “quando tinha direito a elas”, revela Hélio Lucas. O seu pupilo admite: “Foi um dos momentos mais difíceis da minha carreira.”
“São águas passadas”, esclarece o canoísta. A montante, o objetivo é ganhar o ouro em Tóquio.
Nutrientes personalizados
“Interessa que toda a ergonomia do atleta esteja adaptada à modalidade que pratica. Não fará sentido que um atleta pesado se imagine no atletis-
“Desde a Grécia Antiga que a nutrição é importante R. ABREU, NUTRICIONISTA
mo numa disciplina de fundo. É importante que esteja dotado de fibras musculares adaptadas à modalidade.” Uma predisposição de contração rápida potenciará o efeito explosivo a curtas distâncias. Fibras musculares de contração lenta evidenciar-se-ão próprias à condição aeróbia tipo de modalidades de longa duração, elucida Isabel Crespo. Uma boa condição cardiovascular, aliada a uma boa capacidade respiratória, mostrar-se-á “fundamental à oxigenação dos tecidos e poderá vir a fazer a diferença naquilo que é o rendimento do atleta”, elucida a clínica.
Este tipo de fatores intrínsecos, a que se soma a estatura, “marcam a diferença”, acrescenta. “Depois há toda uma panóplia de fatores externos que preveem, imagine!, desde uma boa higiene dentária preventiva de lesões ao descanso regenerador que repõe fibras musculares, que diferenciarão um bom praticante de um excelente atleta.”
Cristiano Ronaldo não fuma nem bebe; socorre-se da natação para ritmar a respiração; é fã da crioterapia para recuperar – de forma gélida – no fim dos jogos; tem psicóloga privada; usa um simulador da NASA para correr sem o efeito da gravidade sobre os ombros.
Rodrigo Abreu, médico nutricionistaresponsávelpelo acompanhamento de atletas de elite, lembraque “já na Grécia Antiga, nos precursores dos atuais Jogos Olímpicos, a alimentação era reconhecida como um fator importante para o rendimento desportivo. Com o avançar do conhecimento científico, a relação entre a nutrição e a performance é cada vez mais compreendidae, atualmente, os atletas de alto rendimento baseiam a sua preparação emtorno de três pilares: o treino, a alimentação e o des-
canso. A sincronização destes fatores é fundamental para umbomrendimento desportivo”.
O clínico acrescenta que “é preciso entender que não existem dietas para determinadas modalidades ou esforços (por exemplo, uma dieta para correr a maratona ou uma dieta para jogar futebol), o que existe são dietas para atletas. Isto porque, para o mesmo esforço, os requisitos nutricionais podem variar conforme o atleta, sendo também diferentes as suas preferências e tolerância aos alimentos. Tipicamente, na alimentação dos atletas damos muita importância aos hidratos de carbono (por serem fontes de energia), às proteínas (pelo papel na manutenção muscular) e à hidratação (água e eletrólitos). No entanto, a forma como estes nutrientes são ‘planeados’ para cada desportista varia bastante”.
Rodrigo Abreu anota que “há modalidades com exigências nutricionais brutais e, se não conseguirmos uma boa adesão do atleta às estratégias alimentares, vamos ter subrendimento, risco aumentado de lesões e menor longevidade da carreira desportiva. Além disso, se nos limitarmos à contabilidade de nutrientes, teremos pessoas bastante infelizes com a sua alimentação e a comer por sacrifício, apenas motivadas pela possibilidade de sucesso desportivo. Portanto, é fundamental criar equilíbrios entre as necessidades nutricionais e o papel emocional e social da alimentação”.
Isabel Crespo comenta que “infelizmente, há quem seja um atleta em potência, mas depois não consiga executar toda a rotina que um desportista de alto rendimento carece de cumprir e acabe por nunca vir a ser um atleta excecional”. A fisiatra deixa claro que “a capacidade de trabalho faz mesmo a diferença”.
Ritmos diferentes
“A força do trabalho faz coisas fantásticas. Não acreditava vir a alcan- çar algo tão grande na minha carreira desportiva, mas nunca deixei de trabalhar.” Inês Henriques foi “recompensada por estes anos todos de trabalho”, admite. Com 12 anos iniciou-se na marcha, no torneio de freguesias de Rio Maior; o prémio chegou 26 anos depois, aos 38.
Em 2017 ganhou a medalha de ouro nos 50 km marcha nos Mun- diais de Londres, batendo a melhor marca mundial que já detinha - na primeira vez que a prova se disputou num Campeonato Mundial de Atletismo cumpriu-a com o tempo de 4h05’56”. No mês passado, em Berlim, confirmou o domínio sagrandose campeã europeia da distância que inaugurou no feminino.
“Para mim, a maior vitória foi a introdução da distância. Só o facto de nos darem, às mulheres, a possibilidade de irmos lá e lutarmos é fantástico. A maior vitória foi as mulheres conseguirem estar lá. A introdução dos 50 km para os homens foi em 1932, nos Jogos Olímpicos de Los Angeles. Estamos em 2018 e ainda estamos a lutar por uma coisa que é obviamente justa”, conclui a atleta.
A marchadora deixa claro que “em todos os desportos, os homens atingem determinadas marcas, as mulheres outras. Eles andam um pouco mais depressa, nós andamos ao nosso ritmo. Mas eu já provei que podemos fazer marcas de grande
“Já provei que podemos fazer marcas de qualidade INÊS HENRIQUES, MARCHADORA
qualidade. Fazemo-lo à nossa maneira”, explica.
“Em condições normais, no seu dia a dia, a Inês treina, em regime bidiário, 12 vezes por semana. Descansa um dia. Em estágio atinge 13 a 14 sessões semanais. Normalmente, faz duas sessões de ginásio por semana”, conta à ‘Domingo’ Jorge Miguel, técnico baluarte da marcha em Portugal.
Nas palavras do treinador – que a acompanha desde sempre –, Inês Henriques “pode não ser ‘super’ em condição física”, mas é dona de “uma grande força de vontade, gosta daquilo que faz e, sobretudo, acredita nas pessoas que a estão a orientar. Acredita no projeto que eu idealizo para ela, trabalha com humildade, lealdade, é de grande dedicação e, quando assim é, os resultados tendem a aparecer”.
Quando se afasta, o corpo ressentese. Quando está de férias, interrompe-as para treinar, por saudades.
Ponto de break
“Cada jogador é um mundo.” Frederico Marques treina João Sousa desde 2011. O tenista vimaranense tornou-se, aos 29 anos, no primei- ro português a atingir a quarta ronda de um torneio do Grand Slam. Fê-lo há semanas no Open dos Estados Unidos e acabaria travado pelo futuro campeão.
O calendário de treino obedece aos principais torneios do circuito. É “onde há mais pontos, mais dinheiro, mais visibilidade, onde se consegue subir mais no ranking”, esclarece, pragmático, o técnico. A planificação dita 36 semanas ininterruptas de competição, que chegam às 40 se contabilizada a representação nacional. Durante o ano, o “treino fle- xível que se adapta às sensações de cada dia” consagra três horas diárias à prática efetiva da modalidade e uma hora à preparação física.
“Mas a mente é tudo”, nota Frederico Marques. No ténis convive-se vezes de mais com o erro – “quem falha menos é quem acaba por ganhar”. O desgaste é patente: “Aqueles 15 a 20 segundos entre pontos são demasiado tempo”, sublinha.
“Procuramos trabalhar essas rotinas para que não se pense, para que flua tudo de maneira automática. Como no xadrez: ele vai mexer esta peça, eu vou mexer aquela; vou fazer esta jogada porque me dá mais tranquilidade e é onde me sinto mais cómodo”, diz o técnico.
João Sousa nasceu para o ténis no Clube de Ténis de Guimarães, aos sete anos. Aos 16 partiu para Barcelona e encontrou na BTT Tennis Academy as condições para se tornar um jogador de elite. A flexibilidade, dinâmica de pés e agilidade são resultado desse trabalho precoce, acredita o treinador.
‘Fred’ sempre foi um irmão mais velho. “O João é muito competitivo, das consolas de jogos às cartas. Não gosta de perder. É muito perfeccionista e nunca está contente com o que tem. Quer sempre mais. Sempre teve objetivos muito definidos para a semana seguinte, para o ranking, para a evolução de pancadas. Quando ele se compromete, não desiste até ter o que quer”, conta.
À quarta tentativa, em maio deste ano, tornou-se o primeiro português a conquistar o Estoril Open, batendo na final o francês Tiafoe, com um duplo 6-4.
“O melhor da sua carreira ainda está para vir”, profetiza Frederico Marques.
“É competitivo das consolas às cartas. Não gosta de perder. É perfeccionista e nunca está contente com o que tem FREDERICO MARQUES, TREINADOR DO TENISTA JOÃO SOUSA