MEMÓRIAS FALSAS
Quando nos lembrarmos de alguma coisa, de uma viagem, de um passeio no campo, de um almoço com amigos, em tempos que
já lá vão, temos a sensação de que tudo se passou como nos lembramos. O funcionamento dos tribunais, os depoimentos, a inquirição de testemunhas, etc., assentam na capacidade de as pessoas se lembrarem do que aconteceu. E o problema – além de mentirem… – é que as pessoas se lembram de situações e detalhes que de facto não aconteceram.
O cérebro humano retém aquilo que nos acontece de forma limitada. A memória é frágil. Não funciona como um armazém que guarda as situações tal qual elas aconteceram. “Funciona mais como um sistema reconstrutivo, que liga e religa situações e os seus vários aspectos”, comenta Kate Jeffery, num estudo da University College de Londres (UCL). O reavivar de memórias faz com que aquilo que nos estejamos a lembrar venha de novo a ser guardado, por vezes, de uma forma diferente. Aliás, todos poderemos constatá-lo. Numa história que tenhamos contado muitas vezes, se pensarmos bem, às tantas já só nos lembramos de contar a história… com diferenças aqui e ali, e não do que de facto aconteceu. Quando pensamos a fundo, tentando saber como tudo se passou, tentando lembrar-nos dos factos concretos, das palavras exactas, tantas vezes já não o conseguimos. Quem conta um conto acrescenta um ponto, diz o ditado. E de ponto em ponto, muda a memória e muda o conto.
Nos últimos anos, a ciência tem estudado os vários processos de alteração de memórias. Em experiências com animais tem sido possível manipular recordações. Por agora, tem-se mudado apenas conteúdos emocionais; por exemplo, tornar a ideia positiva de um determinado local numa ideia negativa, passando assim os animais, com base nas suas recordações – falsas –, a evitar esse lugar. Poderá não se estar longe da criação de memórias humanas falsas.
As pessoas de facto não registam tudo o que lhes acontece. O critério de fundo das recordações, a razão por que umas memórias são preservadas e outras não, mais do que a veracidade, é a sobrevivência; mais depressa registamos algo conforme ao que entendamos que nos possa vir a ser útil, do que conforme ao que de facto se passou.
Lembramo-nos daquele passeio de barco, num bonito barco azul pelo Douro acima, há muito tempo… Mas um dia, estamos em arrumações lá em casa e deparamos com fotografias desse passeio… e o barco não era ‘muito bonito’ e era encarnado… e ficamos baralhados.
Concluindo, há falta de memória e há memórias falsas. E entre uma coisa e outra, calma e humildade porque tudo pode bem ter sido de outra forma.
“O cérebro humano retém aquilo que nos acontece de forma limitada