Correio da Manhã Weekend

LAGOSTAS, CAMARÕES, CAVIAR

- RENTES DE CARVALHO ESCRITOR ANTIGA ORTOGRAFIA

É homem de pouca intimidade, em geral não perde tempo emconversa­s, mas de longe a longe Manuel Bonifácio sai da sua reser

va, o que logo se adivinha pela maneira como entra no café, dá dois passos, olha em redor e vai sentar-se à mesa de quem escolheu.

De vez em quando cabe-me essa honra, embora deva dizer que se me pareceu simpático na altura em que mudei para aqui, ainda há vezes em que o acho aborrecido e picuinhas. Porém, com o passar do tempo fui-me dando conta de que essa sua maneira de ser é a cortina que usa para esconder os estragos da idade.

Ontem à tarde chegou esbaforido, passando o lenço pela testa, a queixar-se que o ar condiciona­do pouco fazia e o que a canícula – palavra que ele gosta de usar – estava mesmo a pedir não era cerveja, era champanhe, duas taças de champanhe bem gelado.

- Só que champanhe aqui, num estaminé destes…

Fez um gesto de aborrecime­nto, pousou a caneca, passado um instante vi-o sorrir como se o que lhe ocorria o divertisse, perguntou se já me tinha contado da festa em Paris, onde estivera quando era rapaz.

De facto tinha, várias vezes, mas o medo de que eu próprio comece a perder a memória torna-me generoso, e disse-lhe que não. Também o mais certo é que seja fantasia, o que pouco importa, pois essa grandiosa festa umas vezes foi emParis, noutras foi emLuanda – “Aquilo só vendo, aquilo é que era cidade!” – o que não varia é a fabulosa opulência.

Passa por alto o detalhe de como ou por quem foi convidado, o ano, o que então fazia e o que o levou a esse lugar, entra logo nos detalhes, pois ficou de boca aberta, porque aquilo era um luxo como só se via no cinema, muitos homens de smoking, as mulheres com vestidos caros, tudo alta-roda. E então o bufete! Arregala os olhos para me- lhor dar ideia do que lá havia e de modo a que eu, enfeitiçad­o pelo seu entusiasmo, seja também capaz de “ver” a cornucópia – outra palavra sua favorita – do que ali tinham de lagostas, camarões, patês, caviar, champanhes, tudo luxo, grande abundância!

Chegado a esse ponto vejo-o levar a caneca ao lábios, bebe um pequeno gole, e por instantes dá a impressão de que vai continuar a sua história, dar outros detalhes, mas nada mais diz e fica imóvel, alheado, numa demora tão longa que não me atrevo a encará-lo.

De súbito mostra-se pesaroso e ao mesmo tempo sacode a cabeça, como se a recordação o perturbass­e.

- E depois, essa festa? – pergunto, acanhado do seu modo.

Olha-me perplexo, dá impressão de que o surpreende o estarmos ali.

“Aquilo era um luxo como só se via no cinema, (...) tudo alta-roda

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