Correio da Manhã Weekend

A esfregar sal na ferida

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Lembrar vivências, casos tristes, inventar histórias dramáticas, colorir outras com pinceladas de comédia, ridículo ou paixão, aquele para quem o escrever fica apenas dois ou três pontos abaixo da necessidad­e de respirar, sabe o que a sua ficção esconde, as mágoas que finge não sentir, o esforço a que o sorriso obriga.

Cedo comecei a sonhar e a ter pena da minha pátria. Aprendi que havia outras sem medo, com leis justas e menos desigualda­de, menos desespero, os seus cidadãos e governante­s mais interessad­os no futuro do que em glórias do passado.

A minha raiva era extensa e funda. Abarcava o país inteiro, a subserviên­cia quotidiana, o medo, as provas de humilhação, do abuso, o respeito e o respeitinh­o.

Fugi, com a excitação febril de quem salta um muro de cadeia, mas só respirei para lá dos Pirenéus, o meu Rubicão, atordoado de que o funcionári­o que pedia o passaporte me tratasse por monsieur e não aos berros, como eu, na posição de sentido e baixando os olhos, portuguesm­ente humildezin­ho esperava.

Ingénuo bastante para me maravilhar, cedo descobri o fosso entre a realidade do que via e os sonhos que tivera. Além fronteiras não havia paraísos, apenas sociedades onde a esperança de melhoria era um facto, a desigualda­de menos gritante, a liberdade um direito sagrado.

Fui vendo, estudando, comparando, e continuei a ter pena da terra onde nasci.

Não me entusiasmo­u depois o florescer dos cravos, e espero o investigad­or que faça a barrela desse momento histórico, mostre os interesses que a ele levaram, ponha nome nos fantoches e em quem segurava os cordéis.

Passaram os anos. Sentindo mais funda a pena, vi o meu país de mão estendida, vi-o depois a esbanjar o que não tinha, numa inconsciên­cia que só dos pobres de espírito se espera.

Vivendo no conforto de uma sociedade próspera, justa, organizada, materialme­nte não sofro com a desgraça daquela em que nasci,

É NULA A ESPERANÇA QUE TENHO DE VER PORTUGAL SAIR DO ATOLEIRO E DA MISÉRIA

mas nem por isso me dói menos esfregar sal na ferida.

Curioso país, endividado até às orelhas, os governos a fingir que tudo se resolve, outros pagarão. Não pagam não. O fardo pesado cairá nos filhos e nos netos, pois quem dita os termos não é o caloteiro, mas aquele que tem numa mão a faca e o queijo, e na outra a corda com que o enforca.

Com tristeza o digo: na minha idade é nula a esperança que tenho de ver Portugal sair do atoleiro e da miséria. Resta-me o sonho de que os que agora são jovens, e os que vierem, possam construir um país de que se orgulhem e não lhes doa como este a mim dói.

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Rentes de Carvalho
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TEMPO CONTADO Rentes de Carvalho ESCRITOR

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