Golpe de azar, golpe de sorte
Em 2015, a SP Televisão pediu-me que apresentasse propostas de argumentos para séries de TV. Acedi com gosto, mas, com prudência, escrevi apenas uma sinopse. Sei como é. Há milhares de ideias que morrem na praia. Aconteceu. O silêncio, resposta habitual, colocou a minha sinopse no purgatório.
Quatro anos depois, eis ‘Golpe de Sorte’, na SIC. Seria a mesma ideia? Na minha proposta, para uma série de uns 30 episódios, um homem novo, Zé-Ninguém e João Pateta na vila, onde é faz-tudo numa tasca, ganha o EuroMilhões; lança-se à conquista de Lisboa; tropeça, mas tem a cabeça no lugar. Com possibilidades de drama e humor, como convém a séries ‘generalistas’, permitia alguma literacia sobre operações económicas e financeiras no imobiliário ou na Bolsa.
Não é nova a ideia de um pobre passar a rico por casamento (’Barry Lyndon’, romance de Thackeray, 1844), por herança (no filme ‘Mr Deeds Goes to Town’, de Frank Capra, 1936), ou pela lotaria (nó narrativo secundário na novela ‘Fina Estampa’, Globo, 2011-12), mas eu propunha um caso português e diferente, porque o protagonista escolhia ser um euromilionário incógnito.
A ideia da minha sinopse fez o seu caminho longe de mim. Transformada em novela, o homem pobre passou a criada e vendedora de frutas e legumes. E, por ser novela, ganhou todos os ingredientes do género: imensas personagens, famílias imensas, e — haverá novela sem ela? — uma criança separada à nascença. Há drama estereotipado e muita comédia desgraçada. Há os muito maus, os muito bons: em vez de pessoas, abundam caricaturas, a da filha tontinha, a do bom rapaz que passará, digo eu, de ingénuo a de
terminado mas honesto, a da velha conservadoríssima e por aí adiante.
A novela apresenta-se como série e, de facto, mistura um pouco técnicas narrativas de ambos os géneros. Mas é principalmente uma novela, e assim será vista pelos espectadores. Terá, em princípio, cerca de 90 episódios, mas, com o êxito inicial, nunca se sabe se os 80 milhões da excriada Céu justificarão que se estique por outros tantos. Nos primeiros episódios, houve saltos temporais mais próprios de série do que de novela, para fazer andar a narrativa. Mas, como ainda assim anda devagar, os episódios parecem uma juke box: não há cena sem música e há música sem cenas, para alongamento dos episódios. Os drones são óptimos para as novelas: mostram campos e vilas lá de cima, em interlúdios repetidos sem fim, e as músicas, repetidas sem fim, preenchem a ausência de narrativa.
E, assim, eis-me pai de uma criança de que me separaram à nascença. A vida, como as novelas, dá muitas voltas.
EIS-ME PAI DE UMA
CRIANÇA DE QUE ME
SEPARARAM À NASCENÇA. A VIDA, COMO AS NOVELAS, DÁ
MUITAS VOLTAS