Correio da Manhã Weekend

“O grande jogador procura soluções”

Autor de ‘Virar o Jogo’ explica como os ensinament­os da alta competição podem ser aplicados na vida de todos nós

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AUK Sport foi criada pelo governo inglês para melhorar as performanc­es desportiva­s para os Jogos Olímpicos de 2012. João Medeiros, jornalista português com percurso invulgar - emigrou e chegou a diretor da ‘Wired’ - interessou-se pela história e acabou por publicar ‘Virar o Jogo - como atletas subvaloriz­ados e cientistas pioneiros descobrira­m o que é preciso para ganhar’, em Portugal editado pela Vogais.

Dê-me um exemplo de um atleta subvaloriz­ado em Portugal que deu a volta?

Se calhar, o Bruno Fernandes que não teve grande sorte na carreira inicial em Itália e depois veio para o Sporting e hoje é um atleta cobiçado. Às vezes, os atletas não se dão num determinad­o contexto. O contexto para o atleta é extremamen­te importante. As pessoas não se apercebem o quanto é difícil para um jogador de futebol - por muito milionário­s que sejam - a adaptação a um novo contexto, a um país, a uma língua, a uma equipa, a sistemas de jogo e ainda lidar com as pressões da família que também tem dificuldad­es de adaptação. Umtalento não tem umdesempen­ho igual em todo o lado. Vê-se isso muito no futebol, à exceção do Ronaldo que, pelos vistos, adapta-se bem em qualquer lado.

A superação está na tentativa e no erro, ou seja, o talento está sobrevalor­izado?

O talento inato sim. Eu nunca vou ser campeão de natação, nem nunca vou correr os 100 metros ou jogar basquetebo­l, pois há critérios físicos que são determinan­tes, mas passando essa barreira, a dos limites físicos, o talento prospera quando os jogadores estão preparados para sair da zona de conforto. O grande jogador está sempre à procura de soluções para diversos problemas, se nunca falharem não saberão o que é possível. O Ronaldo é exemplo disso. É isso que o define como jogador. Quando era jovem, era um ponta de lança, hoje é um jogador com caracterís­ticas diferentes. Ele supera as expectativ­as porque se põe sempre à mercê do falhanço.

É esse o maior talento do Cristiano Ronaldo?

Sim, a persistênc­ia mental. Aliás, na sua geração - a do Ronaldo, do Nani e do Quaresma - vê-se onde está a persistênc­ia. Quando apareceram eram semelhante­s a nível técnico, mas a persistênc­ia e disciplina mental do Ronaldo, o jogador que está sempre a tentar mais e mais, faz a diferença.

Fala da teoria das 10 mil horas de prática que, segundo Gladwell, é o necessário para alguém se tornar mestre em qualquer área...

Menciono no livro para dizer que foi uma parangona. Os grandes jogadores fizeram-se na rua, a brincar, desde miúdos. Se uma pessoa começa obcecada pelo resultado, sem alegria, arrisca-se antes demais a um ‘burnout’. Todos os grandes atletas começaram a brincar. Isso aplica-se a adultos que queiram aprender coisas. Tudo deve começar com exploração, brincadeir­a, seja no futebol ou noutro tipo de habilidade. É a improvisaç­ão, a curiosidad­e, que nos torna únicos e bons. A outra parte da superação é o descanso; o cérebro aprende quando está a descansar. Acho que na vida não levamos isso muito a sério.

O que é que isso quer dizer da China e do trabalho que o país está a fazer no futebol?

Eles levam muito a sério a regra das dez mil horas. Querem fabricar gerações de jogadores. A China anda obcecada com o futebol há cinco ou dez anos, mas podiam aprender com países que tiveram sucesso no futebol, como a Espanha, a Alemanha, o Brasil ou a Holanda, onde há a cultura do jogo de rua. As academias desses países levaram para os treinos essa cultura. Pegaram em crianças - e estou a falar em crianças porque é o que a China está a fazer - e adaptaram os treinos. Nessas novas academias, em que os treinadore­s são sobretudo designers de ambiente, as equipas têm de arranjar soluções por si próprias, o que permite perceber a complexida­de do jogo.

O ‘Virar o Jogo’ - e estou a pegar no título do seu livro - tem que ver também como prazerdes e

aprender qualquer coisa?

Claro.

Podemos então dizer que os portuguese­s - por comparação com os nativos no país onde vive - são mais de improviso e talento inato do que perseveran­ça e ambição?

O português temtalento para o improviso. A Inglaterra - não digo agora porque está um caos - sempre foi um país com estruturas muito fortes, em que tudo funciona, onde as regras namaior parte da vezes funcionam, por isso a expectativ­a é de que as coisas funcionem. Em Portugal, a expectativ­a é contrária, é de que alguma coisa irá acabar por correr mal. Quando alguma coisa corre mal, os ingleses paralisam um bocado, já os portuguese­s aprenderam a improvisar e isso acaba por ser fantástico. Isso vê-se muito bememportu­gueses lá fora - dão-se bemporque acapacidad­e de improvisaç­ão é fantástica.

Podemos então temer pelo povo inglês se houver um Brexit à bruta?

Sim. Tem que ver com essa noção de que ‘nós somos a Inglaterra’. Existe uma soberba antiga, uma imagem da glória passada, que não existe em Portugal. Eles ainda acham que estão em guerra com a Alemanha. Uma pessoa que se adapta consegue perceciona­r diferentes realidades e tirar lucro disso.

Noseulivro­cita Cruyff apropósito de Guardiola: “Os fracos têm de desenvolve­r uma inteligênc­ia especial, umacapacid­ade deencontra­r alternativ­as.”

No futebol, por ser um jogo complexo e por permitir diversos tipos de jogadores, por não ser um jogo de força, torna-se mais evidente. Umjogador mais fraco tem de desenvolve­r outro tipo de capacidade­s, tem de ter inteligênc­ia e visão de jogo. E há exemplos disto mesmo: Figo, Rui Costa, Xavier, Iniesta e Messi são jogadores que têm capacidade de ler o jogo, os passes, que vai além da capacidade física.

Nesse aspeto, o futebol é um desporto mais à dimensão humana?

Sim e isso explica por que é tão popular. Tem o drama de ser umdesporto de equipa mas também um jogo de diversas personalid­ades.

“ O talento prospera quando se sai da zona de conforto

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