DIZ-ME O QUE COMES, DIR-TE-EI QUEM ÉS
O avanço científico tem vindo a desvendar a verdade sobre alguns alimentos. As sardinhas, por exemplo, já foram mal vistas, mas hoje recomendam-se nas consultas de nutrição por serem ricas em cálcio, vitamina D e ómega 3
Ao invés de pedir que se diga com quem se anda para se saber quem aquele é,
Eça de Queiroz preferiu “diz-me o que comes e dir-te-ei quem és”. O escritor punha a mesa para mostrar quem eram aqueles nos seus livros. Fradique Mendes, por
exemplo, despia a sobrecasaca para saborear a “bacalhoada, em perfeita inocência, como no tempo do Senhor D. João V, antes da Democracia e da Crítica”. Se como comemos e o que
comemos mostra quem somos, os mitos associados
à alimentação mostram igualmente que povo somos, como se evoluiu na área da nutrição e como também fomos e somos sujeitos a modas e à pressão da indústria agroalimentar. A jornalista Vanessa Fidalgo desmonta os mitos que fomos ouvindo nas últimas décadas.
“Que os estudiosos, pois, fechem os livros – e preparem
as caçarolas”
Oque pomos no prato também está sujeito a modas que vão e vêm conforme o conhecimento científico avança e descobre novas propriedades aos alimentos. Ao longo dos tempos, os mitos foram variando, mas os especialistas garantem que ainda lidamos com (e ingerimos) muitas ideias erradas.
Há uns anos, uma das grandes surpresas na área da nutrição foi protagonizada pela soja. O milagroso substituto da carne e do peixe, ingrediente-base da alimentação vegetariana e asiática, com inúmeras propriedades nutritivas e ao nível da prevenção de doenças (colesterol, osteoporose, etc.), foi alvo de uma investigação do Clinical Cancer Research (de Washington, EUA) por causa das suas isoflavonas, que têm um comportamento semelhante ao do estrogénio e, por isso, implicações no aumento do cancro da mama. O estudo pretendia perceber porque é que as mulheres asiáticas tinham taxas de inc idê ncia da
doença cinco vezes inferiores às norte-americanas e a conclusão foi retumbante: a soja acelera o crescimento do tumor apenas e só quando ele já está presente no organismo. Além disso, as isoflavonas podem também ter impacto no funcionamento da tiroide.
E quem não se lembra do slogan “três copos de leite por dia, nem sabe o bem que lhe fazia”? Foi chão que deu uvas. Ainda não há acordo na classe científica sobre a influência do leite de vaca em determinados tipos de cancro, mas uma coisa a Escola de Saúde de Harvard conseguiu provar: não existem evidências de que este alimento realmente reduza o risco de fraturas.
Já as toranjas tratam bem as gripes, mas são contraindicadas para quem faz determinado tipo de medicação, nomeadamente para a pressão arterial, novos agentes anticancerígenos, alguns opioides sintéticos e certos imunossupressores.
Outra das grandes revelações, por
exemplo, tem que ver com os alimentos antioxidantes, que também são umbomexemplo de como o bom pode rapidamente tornar-se ‘mau’ quando consumido de forma excessiva ou perante certas doenças.
Responsáveis pela inibição do envelhecimento das células, é frequentemente dito que os antioxidantes (vitamina A, C, E, os betacarotenos e o selénio) têm efeitos anticancerígenos, protegem contra as doenças neurodegenerativas e cardiovasculares e estimulam o sistema imunitário, o que justifica plenamente a sua popularidade entre os adeptos de uma alimentação saudável.
Um dos mais populares e correntes antioxidantes é o chá verde. Todavia, de acordo com um estudo da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos, publicado em abril último, o chá verde também pode ser potencialmente danoso para o fígado quando tomado numa concentração elevada, acima dos 800 mg, que é precisamente aquela que é usada em muitos suplementos alimentares à venda no mercado (que facilmente chegam aos 1000 mg).
Quanto à tradicional chávena de chá verde, podemos continuar a bebê-la com tranquilidade, pois contém uma pequena quantidade de antioxidantes (entre 90 e 300 mg).
Mas não é tudo. Os antioxidantes podem, em algumas circunstâncias, ter uma ação pró-oxidante, com influência no desenvolvimento da doença cancerígena. Isso mesmo ficou demonstrado por um estudo sobre prevalência oncológica desenvolvido na Finlândia pelo National Institute for Health and Welfare of Finland.
A pesquisa envolveu um total de 29 133 homens fumadores entre os 50 e os 69 anos de idade, distribuídos aleatoriamente por quatro grupos que receberam os suplementos seguintes: vitamina E , betacaroteno, vitamina E mais betacaroteno, ou placebo (comprimido sem antioxidantes). O estudo durou cinco a oito anos, findo o qual se observou um aumento de 18 por cento na incidência do cancro do pulmão nos grupos suplementados com betacaroteno, independentemente da suplementação com vitamina E.
Outro estudo feito no continente americano sobre o cancro na próstata e publicado no livro ‘Functional Foods’ durou 12 anos e envolveu 35 533 homens saudáveis com 50 anos ou mais. O objetivo era determinar se sete a 12 anos de suplementação diária de vitamina E, com ou sem selénio, reduziria o número de cancros da próstata.
A suplementação diária foi interro mpida e m o utubro de 2 0 0 8 , quando uma análise demonstrou não só que a suplementação com vitamina E, sozinha ou em conjugação com selénio durante 5,5 anos, não diminuía a incidência de cancro da próstata como até aumentou em 17 por cento o risco, em relação a homens do grupo placebo - uma diferença estatisticamente significativa.
Novas informações
Pedro Lobo do Vale, médico de Medicina Geral e Familiar e presidente da Associação Portuguesa de Suplementos Alimentares, reconhece que, desde sempre, há alimentos que entram nos nossos hábitos alimentares sem que tenhamos “total conhecimento e controlo” sobre eles.
“Os refrigerantes e as colas, por exemplo, quando apareceram, não se ouvia dizer que fizessem mal a coisa nenhuma, nem tão pouco a própria fast food. Mas não só o conhecimento evolui, como passámos a ter muito mais informação e, sobretudo, preocupação com a nossa alimentação”, lembra.
O que não impede que persistam certos mitos à nossa mesa. Como por exemplo o óleo de coco, agora tão em voga nas novas correntes e modas alimentares: afinal não emagrece. “Tem um sabor agradável e pode substituir outros óleos, mas só por uma questão de gosto, porque tem exatamente as mesmas desvantagens dos óleos tradicionais”, diz. Ou a batata-doce, “que tem mais fibra e é mais rica e interessan
Ovos, marisco e peixes gordos são exemplos de alimentos que outrora se recomendava contenção no seu consumo
PEDRO CARVALHO, NUTRICIONISTA
te do ponto de vista nutricional, mas que engorda tanto como a outra”.
Outro mito corrente é o azeite: “Tantas vezes apresentado como um produto muito saudável, o azeite engorda tanto como o açúcar ou mais ainda. Não esquecer que o azeite tem nove calorias por grama e o açúcar tem quatro. No entanto, o azeite faz mais falta ao nosso corpo do que o açúcar”, ressalva o médico.
Da mesma forma, a chia, as bagas de góji e outros chamados superalimentos - ricos em ómega 3 e vitaminas -“não curam o cancro”, assegura o médico que, no entanto, refere o desconhecimento em torno das proteínas versus hidratos de carbono como um dos mitos mais presentes à mesa de quem quer comer bem.
“Basear a alimentação emproteínas é um erro, a não ser que se seja desportista. Tal como retirar totalmente os hidratos de carbono da nossa dieta. Os hidratos são necessários para o correto funcionamento do nosso corpo. Devemos é preferir os naturais (das frutas, das massas, do arroz), não adicionar açúcar e, acima de tudo, evitar os hidratos escondidos e modificados que vêm disfarçados nos produtos processados, como certos cereais ou nas bolachas.”
Falar de hidratos leva-nos a outra questão muito em voga: as dietas sem glúten. “Existem pessoas realmente intolerantes, mas a maioria não oéeoglúten em nadapreju dica as pessoas saudáveis. O que não podemos esquece ré que o trigo que estamos a ingerir hoje em diaéal tamente processado e modificado e nada tem que ver com o trigo que se
Basear a alimentação em proteínas é um erro
PEDRO LOBO DO VALE, MÉDICO
ingeria antigamente. As intolerâncias e as alergias alimentares derivam precisamente da modificação que os alimentos foram sofrendo e também da própria variedade que temos à nossa disposição. Comemos muito mais coisas que os nossos antepassados, por isso é natural que haja mais alergias e intolerâncias”, explica Pedro Lobo do Vale.
Mas na cronologia dos mitos da alimentação também há boas notícias. Muitos produtos que considerávamos nocivos ou menores do pronto de vista nutricional, afinal, revelaram-se essenciais à saúde.
“Aqui há que referir as especiarias, que eram apontadas como nocivas para o estômago. Não é verdade. Parecem ter até um efeito protetor. Acima de tudo, impedem-nos de abusar do sal, esse sim, um dos nossos grandes inimigos.”
Certos peixes que antigamente se consideravam ‘menores’ do ponto de vista nutricional – como a cavala, o atum ou a sardinha - são afinal extremamente ricos em ómega 3, cálcio e vitamina D5 e podem ajudar quem sofre de artrite ou problemas circulatórios.
Outras fontes de proteína entram agora pela porta grande na roda dos alimentos, conforme lembra Pedro Carvalho, professor da Universidade Católica, nutricionista e autor do livro ‘Os Mitos que Comemos’ (editora Matéria Prima): “Os ovos, moluscos e marisco por causa do colesterol e também os peixes gordos são bons exemplos de alimentos que outrora se recomendava contenção no consumo e hoje em dia sabemos que são alimentos nutricionalmente muito importantes. Com o azeite e os frutos gordos (noz, amêndoa, amendoim, caju, etc.) aconteceu a mesma coisa.” Mas tudo com conta, peso e medida, lembra Pedro Carvalho: “Um dos principais problemas é a falta de equilíbrio, pois ao sabor das modas passamos de três ovos por semana para três ovos por dia, ou de uma dieta sem frutos gordos para uma enxurrada todos os dias, o que pode ser prejudicial para quem está a tentar emagrecer.”
Mudanças de posição que não espantam Pedro
Carvalho:
“As ciências da nut r iç ão s ão uma área de estudo recente, daí que seja normal existirem alguns estudos contraditórios.”
Quanto aos riscos associados às modas, o professor não tem dúvidas: “Felizmente, as correntes antileite, antiglúten, paleo, detox, jejum intermitente, etc., começam a perder força, o que demonstra que a ciência vai vencendo. Com a alimentação não existe um risco tão acrescido como com a moda da não vacinação, por exemplo. No limite, a pessoa fica com uma alimentação mais limitada e menos feliz, pois retira alguns alimentos que gosta de comer. Quando estamos a falar de práticas detox mais agressivas, com maior restrição alimentar ou a ingestão permanente de água do mar (para citar dois mitos), aí sim, já podemos ter problemas de saúde associados”, frisa.
Por isso, Pedro Lobo do Vale deixa a todos no seu consultório a melhor e a mais simples das receitas: “Variar o máximo possível a alimentação e preferir sempre que possível o biológico.”
O trigo hoje não tem nada que ver com o de antigamente
PEDRO LOBO DO VALE, MÉDICO