Correio da Manhã Weekend

O NAUFRÁGIO MAIS FATAL DO QUE QUALQUER COMBATE

Desastre do batelão que fazia a travessia de tropas e viaturas no rio Zambeze, em Moçambique, a 21 de junho de 1969, matou 101 militares e cinco tripulante­s: mais mortífero do que a batalha de Nambuangon­go, em Angola, ou a Operação Nó Górdio

-

Ainda hoje não sei nadar”, conta José Vieira, um dos sobreviven­tes do desastre no caudaloso rio Zambeze ,50 anos depois daquele que foi o maior acidente em toda a Guerra Colonial, quando o batelão que fazia a travessia entre Chupanga e Mopeia, carregado com 150 homens e 30 viaturas, começou a meter água e se virou num minuto. Nem na mítica batalha de Nambuan gongo, noiníc iodo conflito em Angola, no ano 1961, nemnacompl­exa Operação Nó Górdio, emMoçambiq­ue, em 1970, se registaram tantas baixas como neste naufrágio do dia 21 de junho de 1969, emque perderam a vida 101 militares e cinco tripulante­s.

Naquele sábado, quando os relógios marcavam 17h30, a barcaça afundou-se tão rapidament­e que O Braga, como era conhecido José Vieira no Batalhão de Caçadores 2853, umeletrici­sta daconstruç­ão civil que era sapador de minas e armadilhas nacompanhi­a estacionad­a emCantina Dias, seguiu as instruções do sargento que lhe gritou: “Oh, Braga! Agarra-te ao

jerricã e não o largues!” Enfrentand­o as duas traiçoeira­s correntes contrárias do rio, “cheio de crocodilos”, após ter andado algum tempo a flutuar, agarrou-se aos ramos de uns salgueiros e ali esperou, com outros camaradas, “mais de quatro horas” pelo helicópter­o que os haveria de retirar da água. “Disseram-me para atar o cabo à cintura e deixar o jerricã com óleo, mas não o larguei, com medo – e, mais tarde, na ilha dos irmãos Campira, um deles disse-me para espalhar aquele óleo pelo corpo e, a partir daí, deixei de sentir frio.”

Heróis Campira

Os quatro nativos irmãos Campira (Vasco, Zeca, Manuele Armando) foram os heróis dessa noite porque, alémde resgatarem, nas suas duas pirogas, 19 pessoas das 54 que se salvaram, desde os vultos que boiavam no rio até aos seis que se mantinham pendurados na ponta da embarcação que ficara fora de água, para aquecer os náufragos na ilhota onde viviam –

Os irmãos Campira salvaram sobreviven­tes nas pirogas

destruíram mesmo algumas das suas estruturas humildes, como a pocilga onde guardavam dois suínos, para garantirem lenha nas fogueiras – pois os soldados, encharcado­s de água, sentiam o ‘cacimbo’ noturno.

No livro do ex-furriel miliciano Manuel Pedro Dias, ‘Aquartelam­entos de Moçambique – Distritos do Niassa e daZambézia­1964/1974’, o autor explica bem o que significou, na altura, este comportame­nto daquelas pessoas modestas: “Aatitude dos pescadores originou emMoçambiq­ue uma ondade solidaried­ade tal que lhes valeu, por iniciativa do jornal ‘Diário’, de Lourenço Marques [desde a independên­cia, Maputo], a oferta de uma casa pré-fabricada, bem como um louvor decretado pelo governador-geral, Dr. Baltazar Rebelo de Sousa [pai de Marcelo Rebelo de Sousa]. Foi com base neste louvor que lhes foi concedida a Medalha de Prata de serviços distintos”.

Soldado em lágrimas

Em Lourenço Marques, formara-se uma coluna composta por condutores de companhias vindos propositad­amente do norte para levarem até às suas unidades as viaturas Unimog que tinham chegado à capital do Índico. Mas também se juntaram àquele contingent­e – comandado por um oficial de baixa patente, o alferes miliciano Óscar Rosário, e constituíd­o por umsegundo sargento, um furriel, dez cabos milicianos e 137 praças – desde os que ali se demoraram a treinar a circulação nas estradas pela esquerda (“à inglesa”, pois Moçambique teve sempre grandes influência­s da África do Sul), até aos que iriam inaugurar dois Pelotões de Reconhecim­ento Daimler em Vila Cabral (hoje, Lichinga) e fizeram um curso rápido para aprender a manobrar as autometral­hadoras Panhard AML.

No dia 15 de junho, aquela centena e meia de homens chegaram a Chupanga, a localidade da margem sul onde se fazia a travessia fluvial do rio Zambeze, assegurada por dois batelões, que estavam a ser reparados. E, para lá da coluna que ali aguardou uma semana, também camionista­s civis, que iam abastecer a região norte, se foram acumulando. Perante a hipótese de os militares, que tinham sempre prioridade, efetuarem duas viagens nabarcaça maior, que já funcionava, os motoristas dos camiões foram perguntar ao alferes se não conseguiri­am carregar tudo de uma vez e, assim, antecipar a sua partida. O “graduado” questionou o dono daquela grande barca, Amâncio Pedreira, se se conseguiri­a. Perante as garantias do proprietár­io da plataforma flutuante, após se encostarem­os Unimog uns aos outros, enquanto foi possível conduzi-los, e, a seguir, as restantes viaturas a serem colocadas por cima das estacionad­as à força de

braços, abarcaça desatracou por volta das 16h00.

Então com 22 anos, o primeiro cabo atirador Mapril Pereira, do Pelotão de Reconhecim­ento Daimler 2111 – que faria o seupercurs­o profission­al numa companhia de navegação, “mas em terra”, no escritório de contabilid­ade –, gravou a imagemde umdos soldados na memória. Se alguns não queriam embarcar, aquele “estava tão assustado que chorava, como se tivesse uma premonição do que viria a acontecer” – seriaumdos que encontrara­m a morte no Zambeze, onde até ficou o proprietár­io da embarcação.

Vinte segundos decisivos

José Vieira(OBraga), que se tinhaofere­cido como voluntário para ir fazer a escolta àquela coluna, continua convencido de que se tratoude “umato de sabotagem” e que Amâncio Pedreira “era amigo dos terrorista­s [como eramdesign­ados os guerrilhei­ros inimigos daFrelimo]”. Alegaque o morto identifica­do como o dono da barca não eraapessoa­certa, “porque não tinha, no braço, a tatuagem ‘Amor de Mãe’”, emque ele e os seus camaradas tinhamrepa­rado nos dias anteriores.

Mas outros sobreviven­tes, como Mapril Pereira e António Banza Rodrigues, ambos com destino à nova unidade de carros de combate emVila Cabral, coincidem na versão de que a brisa que se sentira no início da tarde soprava com mais intensidad­e e aumentou a ondulação no rio, o que provocou a inundação das caixas que serviam de flutuadore­s – e tornou-se um esforço inútil a tarefa de

Agarrei-me ao jerricã e nunca mais o larguei JOSÉ VIEIRA SOBREVIVEN­TE

20 segundos mais tarde, ter-me-ia sido fatal MAPRIL PEREIRA SOBREVIVEN­TE

Descalcei as botas e comecei a nadar de costas para poupar forças, mas as ondas enchiam-me a boca de água ANTÓNIO BANZA RODRIGUES SOBREVIVEN­TE DO NAUFRÁGIO

alguns soldados, que ainda tentaram retirar dali a água apenas com recurso a baldes.

Mapriljá não consegue precisar se lia umjornal ou uma revista de histórias aos quadradinh­os quando um companheir­o lhe disse para vir para fora. Ainda hesitou, apesar do alarido, mas saiu pela janela da cabina do Unimog – as viaturas estavamde tal formaencos­tadas que não se conseguia abrir as portas. Ouviu, então, a voz do alferes Rosário agritar: “Calma! Calma! Ninguém vai morrer!” Logo a seguir, a embarcação virou e caíram carros e militares – “20 segundos mais ter-me-ia sido fatal.”

Apesar de não saber nadar, conseguiu agarrar-se a uma tábua grossa – com uns quatro metros de compriment­o. Sem qualquer preparação para enfrentar umacidente deste género, sentindo-se arrastado pela forte corrente e recordando o que tinha ouvido sobre os enormes crocodilos que ali viviam, pensou que “tinha chegado o seu momento” – o que o impediria, agora, de se orgulhar dos dois filhos e dos quatro netos. Mas bateu num banco de areia e apercebeu-se que podia caminhar até à ilhota dos Campira – a quem não poupa nos elogios.

Salvo pela guitarra

Banza Rodrigues, atual eletricist­a no MAAT (Museu de Arte, Arquitetur­a e Tecnologia), quando obatelão se inclinava, descalçoua­s botas, mergulhoue começou“ana dard ecos tas,pa rapoupar forças, mas a sondas enchiam a boca de água”. Pouco depois, ao ver passar um saco de viagem, agarrouse àquela improvisad­a‘ tábua de salvação ’, enquanto outros lançavam mão a troncos de árvore e amalas de viagem.

Ao ver aproximar-se um náufrago com a intenção de se segurar ao mesmo saco, percebendo que a boia não seria suficiente para ambos (e temendo que o pânico do outro arrastasse os dois para o fundo), lançou-lhe o objeto e continuou a nadar. Até que deparou com um grande bidão vazio de 200 litros, onde já se apoiavam mais três homens, “e pediu [-lhes] boleia”. Acerca de 50 metros da margem, em desespero, tentaramto­dos nadar para terra, mas o esforço era tremendo. Exausto, quando Banza sentiu que as pernas já não lhe obedeciam, voltando à posição vertical, percebeu que a água só lhe dava pela cintura.

Mas aversão mais bizarraent­re os 54 sobreviven­te sé ado que narrou ter sido salvo pela guitarra que levara da Metrópole – a designação de Portugal europeu, numa época em que havia colónias emÁfricae naÁsia –, usando o instrument­o, emque talvez tocasse fados da Amália ou canções de Bob Dylan, como flutuador.

Cemitério com garrafas

A Companhia de Cavalaria 1798, sediada em Morrumb ala( o seu Batalhão de Cavalaria 1923 era em Marrupa), tinha umdestacam­ento de dois pelotões (num total de 30 homens) em Mopeia, cujo objetivo, além da vigilância dos “terrorista­s” que tentavam atravessar o Zambeze, era proteger as grandes companhias industriai­s de cana de açúcar e de chá. Aquele posto avançado de Os Galgos (como eram conhecidos os elementos do batalhão), que regressari­a a casa em dezembro, acabaria por ficar naHistória da Guerra Colonial pela sua atuação neste acidente. O comandante do destacamen­to era, então, o alferes miliciano António Moura, que seria professor do Ensino Secundário e presidente da Câmara Municipal de Montalegre durante quatro mandatos (de 1976 a 1990, eleito pelo PSD).

Nas semanas seguintes ao acidente, andou “preocupado e absorvido” na desagradáv­el missão de encontrar sobreviven­tes, de resgatar corpos (durante 20 dias, por cada viatura que o guindaste do navio ‘Mezingo’ içava, “vinham à tona dois ou três soldados”) e de os tentar identifica­r. De todos os que viu, “apenas num caso as orelhas tinham sido comidas por crocodilos ou jacarés”. Mas os que nunca se encontrara­m podem ter sido devorados.

No talhão improvisad­o parasepult­ar as vítimas, colocaram uma garrafa vaziada popular cerveja Laurentina em cada campa, onde inseriam umpapel que registava“os documentos encontrado­s nos bolsos, os dados fornecidos por alguém que os reconheceu ou a relação de bens pessoais [fios de prata ourelógios] que pudessemle­var auma posterior identifica­ção”. Destaforma, esclarece o antigo militar, “poderiam vir aser levantados os corpos”.

Nos dois meses que os sobreviven­tes ali estiveram, receberam as visitas de Baltazar Rebelo de Sousae do comandante da Região Militar de Moçambique, que ainda era o general António Augusto dos Santos. Mas, como remata Banza Rodrigues, desembarca­do a 30 de abril em Lourenço Marques, que ainda não conhecera as agruras do “mato”, onde ficaria até 1972, na altura, Mopeia tinha “mais mortos do que vivos”.

 ??  ??
 ??  ?? 3
3
 ??  ?? Banza Rodrigues descalçou as botas, mergulhou e nadou até agarrar um saco de viagem que funcionou como boia 2José Vieira, O Braga, agarrou-se a um jerricã e acabou por ir ter à ilha dos irmãos Campira, com outros sobreviven­tes 3António Moura, então alferes miliciano, comandou nos dias seguintes o destacamen­to encarregad­o de resgatar os corpos e de tentar identificá-los
2
Banza Rodrigues descalçou as botas, mergulhou e nadou até agarrar um saco de viagem que funcionou como boia 2José Vieira, O Braga, agarrou-se a um jerricã e acabou por ir ter à ilha dos irmãos Campira, com outros sobreviven­tes 3António Moura, então alferes miliciano, comandou nos dias seguintes o destacamen­to encarregad­o de resgatar os corpos e de tentar identificá-los 2
 ??  ?? 1António
1
1António 1
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ?? 4
4

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal