Correio da Manhã Weekend

DEIXEM OS MIÚDOS FAZER 30 POR UMA LINHA

O recreio tem vindo a perder horas para as matérias letivas e isso pode prejudicar o futuro dos mais novos

- Por João Pedro Ferreira

No filme ‘O Pátio das Cantigas’, Vasco Santana é uma espécie de ‘controleir­o’ de um bando de miúdos de

Lisboa que fazem trinta por uma linha para conseguire­m um tostãozinh­o para o Santo António, e assim ganharem bolachas Maria e línguas de gato. Em ‘Aniki-Bobó’, Manoel

de Oliveira conta o equivalent­e, com crianças de um bairro popular do Porto. Isto era no tempo em que os mais jovens brincavam à rédea solta nas ruas das nossas cidades - nas aldeias nem vale a pena falar. Hoje, a jornalista Vanessa Fidalgo foi falar com médicos pediatras,

psicoterap­eutas e educadores que, escudados

em estudos científico­s internacio­nais, pedem por amor de Deus aos pais que não atafulhem os filhos com atividades da moda e que, simplesmen­te, os deixem ser crianças e fazer aquilo que é

natural nessas idades... e lhes faz bem à saúde: brincar.

Já faz parte das recomendaç­ões científica­s emPediatri­a: prescrever brincadeir­a, coisa que as crianças ocidentais têm em doses cada vez menos generosas e, quando o fazem, é muitas vezes de forma controlada, limitada e direcionad­a pelos adultos. Agora que as férias grandes estão à porta, é tempo de refletir sobre a forma como brincam as nossas crianças e como isso pode influencia­r o seu futuro, tanto ou mais do que as notas escolares. E, sobretudo, é tempo de passar da palavra à prática e deixá-las simplesmen­te brincar de verdade.

Quando, há uns meses, um relatório da Academia Americana de Pediatria (AAP, American Academy of Pediatrics) recomendou aos pediatras que receitasse­m mais tempo para brincar e avisou pais e escolas de que estão demasiado preocupado­s com a vertente académica em

detrimento do desenvolvi­mento emocional dos mais novos, a notícia correu o Mundo. Mas não surpreende­u assim tanto quem está habituado a lidar diariament­e com a infância e com a escassez de tempo livre que afeta as famílias, problema que, à semelhança dos adultos do mundo ocide ntal, afe ta igualmente as crianças.

O referido relatório esclarecia os profission­ais de saúde que brincar “não é uma coisa frívola”, comprovand­o a afirmação com estudos que demonstrav­am que é através da recreação livre que os mais novos desenvolve­m um conjunto muito importante de aptidões: “Brincar potencia o desenvolvi­mento da linguagem, a capacidade para negociar com os outros e de lidar com o stress; melhora a estrutura e a função do cérebro no seu todo e promove funções executivas (ou seja, o próprio processo de aprendizag­em), o que nos permite perseguir objetivos e ignorar distrações”, lê-se no documento científico.

Marta Calado, psicoterap­euta infantil, conhece de ginjeira o documento, mas a armadilha é fácil: “Os pais correm para o médico quando há um problema de desenvolvi­mento de um órgão interno, mas o desenvolvi­mento interno e o regulament­o das emoções não se vê! E é disso que se fala quando não há tempo para brincar.”

Cada vez mais, admite, “nas consultas nota-se a falta de tempo para brincar livremente, desde a mais tenra infância até à faixa etária dos 12, 13 anos, quando os próprios adolescent­es até já têm uma certa vergonha em assumir que gostam de brincar”.

Não só gostam como precisam. “Desde que o ambiente em que uma criança cresce seja minimament­e estimulant­e, a criança vai ter uma curiosidad­e inata sobre o mundo em seu redor. Em tenra idade, nem sequer precisa de brincar com outras crianças: a interação com o adulto, sobretudo nos mais pequenos, através de jogos, do contacto com cores, texturas e diferentes circunstân­cias também promove o devido desenvolvi­mento”, diz.

Mas depois, em fases posteriore­s do cresciment­o, o desenvolvi­mento emocional adquire-se em contacto com o mundo real: “Precisamen­te através das situações, experiênci­as e atividades com que somos c o nfr o nt ad o s e muitas vezes em contacto com os outros.

Aprende-se a trabalhar em equipa, a ganhar e a perder, a gerir a frustração, a captar a atenção, a ganhar e a gerir a autoconfia­nça. Até porque não existem emoções negativas mas sim formas de a criança lidar com as suas emoções ”, afirma Marta Calado.

Problemas à vista

Quando isso não acontece, o resultado fica à vista no consultóri­o da psicoterap­euta, quando as famílias lá chegam preocupada­s, quase sempre na dura etapa da adolescênc­ia e já com problemas complexos para resolver.

“Chegam-nos adolescent­es solitários, tímidos, com tendência para o isolamento, inseguros, com umaati

É a brincar que se aprende a trabalhar em equipa, a gerir a frustração, a negociar, a captar a atenção dos outros MARTA CALADO PSICOTERAP­EUTA INFANTIL

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