O DIA DAS RAÇAS...
É um velho muito velho, feiticeiro na terra dos feiticeiros, Mambone, província de Inhambane, Moçambique. Num português atabalhoado, de mistura com frases em língua ndau, mostra com orgulho uma
medalha carcomida pelos anos. “Deram no Dia da Raça!” E quem deu? “Mandou o Presidente Carmona!” Estamos nos anos 90 do século passado. Carmona havia morrido décadas antes. Moçambique era independente desde 1975. O velho feiticeiro, porém, mantinha os usos e costumes da sua Pátria, a região da Velha Mambone, onde convergiram as caravanas com os produtos da terra - marfim, pontas de rinoceronte, madeiras ricas - ainda o Estado português não havia tomado conta da administração. Finais dos anos 40, alguém se lembrou de entregar ao feiticeiro uma medalha do Dia da Raça e de Camões, era Carmona Presidente e Salazar o homem-forte do Estado. O velho tinha noção clara da sua Pátria de Mambone, mas entendeu que o seu País fosse um tal Portugal, cujo rei era... Carmona.
O Estado Novo assumiu posições eugenistas e racistas. Mas a noção de Raça, com direito a Dia, foi incutida sobretudo como uma “originalidade” dos portugueses, que se haviam miscigenado com povos de vários continentes. Tudo para justificar um País com um “inalienável e inquestionável” Império Colonial, como explica a estudiosa Conceição Meireles. Há quem baralhe os conceitos de Pátria, Nação, País e Estado. A noção de Nação confunde-se sobretudo com a de País - um território organizado com História própria. A Nação vai mais longe: sublinha os valo re s c ulturais c omuns à população. Já a Pátria é uma identidade abstracta mas profunda, uma realidade afectiva a que grupos e cidadãos estão ligados. Quanto ao Estado, é basicamente a entidade responsável pela organização do território e da vida das pessoas.
No pós-25 de Abril, o Dia da Raça foi substituído pelo Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Este ano, os infatigáveis Marcelo e Costa dividiram-se por Portalegre e Mindelo, em Cabo Verde. Não se falou de raças, falou-se de Lusofonia, enfim, de políticas. E (ainda) não é fácil aceitar o pedido do Presidente cabo-verdiano Jorge Carlos Fonseca: estadias de até 30 dias em Portugal sem necessidade de visto. Almeida Santos, negociador da descolonização, contava que Aristides Pereira, o primeiro Presidente de Cabo Verde, teria visto com bons olhos uma espécie de confederação com Portugal, ao jeito de Puerto Rico com os Estados Unidos. E porque isto de País e de Pátria tem muito que se lhe diga, um velho estivador do Mindelo morreu há meses com forte convicção na alma: “A minha Pátria é Cabo Verde, o meu País é Portugal!”
Isto de País e de Pátria tem muito que se lhe diga...